9.10.10

Niilismo precoce

Neste tour de force de narrativa impressionista, acompanhamos as sensações e perplexidades de um grupo de estudantes em Brasília, cujas vidas se arrastam sem um sentido maior, divididas entre a universidade, os compromissos sociais pouco sérios e o consumo cavalar de cultura de massa, representada pela TV, cinema, música, videogames, internet e derivados — como blogs, fotologs e YouTube —, sempre na expectativa de que algo significativo vá preencher essas vidas, da mesma forma que as imagens no computador preenchem a tela, muito embora o excesso de imagens e de informação torne a vida ainda mais vazia e as pessoas mais ignorantes. Em cada nova impressão de algum personagem palpita um esforço para encontrar em cada coisa um sentido, um signo, um sinal, que no entanto não existe, por isso impossível.

Revisitando o spleen ou tédio de Álvares de Azevedo, os jovens brasilienses de Vinicius Castro vão gradualmente percebendo que o tempo e o espaço não precisam de nós, antes nos ignoram olimpicamente, que a existência não é forjada por acontecimentos e peripécias, e sim pela somatória de impressões gravadas no cérebro, que não há de fato lições a aprender ou a ensinar, mas tão somente sensações às quais reagir, ou não reagir. Preferivelmente não reagir. Há poucas reações a tudo em Os sinais impossíveis: a ditos espirituosos, a rompantes ideológicos intelectuais, ao sexo. O niilismo perpassa a narrativa como uma névoa na qual despontam luzes de diversas cores, mas sem intensidade suficiente para romper o invólucro gasoso.

Meus olhos continuam fechados, vão se abrir daqui a pouco com alguma expectativa diante daquela coisa toda, a repetição que eu preciso sustentar e aceitar, a retomada. O mundo cheio de graça esperando que eu o ganhe de volta, que eu disperse todos os restos e o bote para funcionar, que eu viva deliberadamente.

Estatelado bêbado no chão, um dos moços reflete: “Eu temo pelo que a umidade e a sujeira do meio-fio podem fazer com minha calça, mas não é como se fosse fazer algo sobre o assunto”.

Em meio a essa inundação de descobertas precocemente envelhecidas e degeneradas em frustrações, emerge o romance vacilante de João e Luísa, rapidamente enredado na teia de relações humanas cada vez mais difíceis e sufocado pela série de rituais que tentam forjar a nossa realidade. O principal personagem, no entanto, é a própria narrativa, que por meio da descrição dos mais prosaicos objetos e gestos faz derramar de cada página um fluxo lírico quase ininterrupto de imagens embaladas por um vocabulário profundamente musical e pontuadas, aqui e ali, por diálogos de acentuado coloquialismo.

Os sinais impossíveis pode ser visto como um magnífico exercício de impressionismo na literatura, mas também como uma crítica poética à sociedade de produção e consumo, responsável pela banalização dos relacionamentos, pela falência de ideais e valores, pela deterioração dos padrões culturais e por limitar os sonhos da juventude a gratificações instantâneas, tão efêmeras quanto websites, nessa gigantesca engrenagem capitalista que reduz os indivíduos a uma massa virtual configurada para consumir ou ser “deletada”.

28.6.10

Barack, o filho do Brasil

Em janeiro de 2009, Barack Hussein Obama II tornou-se o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América, país onde o preconceito racial sempre foi mais virulento que em qualquer outro sob o sol.

Empossado no cargo de maior poder executivo do mundo depois de este ter sido ocupado durante oito anos pelo corrupto e ultraconservador George W. Bush — que violou liberdades individuais dentro da terra do Tio Sam e direitos humanos fora dela, ensanguentou o Oriente Médio sob pretextos falsos com propósitos lucrativos escusos, e mergulhou o seu próprio país, o mais rico do planeta, numa das piores recessões econômicas de sua história — o jovem, brilhante e carismático senador negro e descendente de muçulmanos passou a encarnar as esperanças de boa parte de sua nação e do mundo, foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz e se tornou um símbolo de esperança, renovação e vitória das minorias sobre a opressão e o racismo, mas também alvo do ódio de reacionários furibundos, neonazistas e outros insanos defensores da supremacia branca.

Foi então, em meio a este idílio entre o novo presidente democrata norte-americano e o mundo civilizado, que Fernando Jorge, um dos autores mais polêmicos do Brasil, armado com a lente de aumento da observação, perspicácia e erudição esbanjadas em cada um dos seus vinte livros, conseguiu detectar num incidente prosaico na vida da mãe desse grande homem algo que havia escapado a todos os olhares: um vínculo inequívoco entre o Brasil e o nascimento de Obama, permitindo ao biógrafo definitivo de Olavo Bilac, Aleijadinho, Paulo Setúbal e outros brasileiros egrégios, conceber uma teoria absolutamente brilhante e inusitada, segundo a qual o 44º presidente dos Estados Unidos deve sua própria existência à arte e poesia brasileiras — fortemente influenciadas pela cultura negra —, sendo portanto um brasileiro em espírito, se não por nacionalidade.

Com tão revolucionária tese à guisa de fio condutor, este livro originalíssimo discorre não somente a respeito da origem e ascensão de Obama, mas também sobre os abusos sofridos pelos negros nos Estados Unidos e no Brasil, as relações por vezes tensas entre esses dois países, o filme Orfeu Negro, que teria fecundado a mãe branca de Obama, a obra do poeta Vinicius de Moraes, espécie de avô espiritual de Barack, as ameaças que pairam sobre a vida deste como uma espada de Dâmocles — ou mais precisamente da Ku Klux Klan — e diversos outros tópicos prenhes de informações inestimáveis sobre cultura, política, arte e história, brasileiras e estadunidenses.

Segundo a mitologia grega, Orfeu amansava as bestas e encantava os humanos com o som de sua lira. Se o pacificador Barack Obama pode ser visto como uma espécie de Orfeu negro, Fernando Jorge tem também procurado emular o semideus da Trácia no empenho incansável de arrancar seus compatriotas da barbárie, embalando-os com a música de sua prosa erudita e bem-humorada, ou ainda, a exemplo de outro semideus, travando combate aguerrido à hidra da imbecilidade, decepando-lhe as múltiplas cabeças da ignorância e do preconceito, mais titã que semideus, embora sempre inspirado pelas musas.

11.11.09

O símbolo secreto

Toledo, 1523. “Saibam todos os que lerem este manuscrito, que eu, Iacobus de Cartago, decidi revelar onde se esconde a verdadeira face de Deus, Nosso Senhor.” Por escrever essas palavras, o mestre-escultor Iacobus de Cartago incorre na fúria homicida dos Filhos da Viúva, que o matam após torturá-lo cruelmente, perfurando-lhe os olhos que não deviam ter visto, e arrancando-lhe a língua que não devia ter falado sobre o que viu.

Séculos depois, nos dias atuais, o manuscrito de Toledo cai nas mãos do paleógrafo Jorge Balboa, que o traduz e acaba assassinado da mesma forma cruel e sangrenta que o mestre-escultor. Antes de morrer, no entanto, Balboa envia por correio eletrônico uma cópia do manuscrito cifrado ao seu amigo, o bibliotecário Leonardo Cárdenas, que então passa a ser perseguido pelos assassinos. Agora Leo não tem escolha: para salvar sua própria vida, precisa elucidar o mistério cuja descoberta custou a vida de dois homens inocentes.

Guiado pelo manuscrito de Toledo e por pistas encontradas nas catedrais góticas, na epopeia dos cavaleiros templários, na Bíblia, nas Centúrias de Nostradamus e em outros documentos herméticos, Leonardo parte numa busca frenética que o coloca no rastro do objeto mais sagrado de todos os tempos, a mítica Arca da Aliança, em meio a decifrações de intrincados hieróglifos, charadas e anagramas, auxiliado pela sua namorada, a bela historiadora Cláudia, pela criptógrafa Cristina, e o tempo todo caçado por Lilith, a diabólica matadora de aluguel.

A emocionante aventura levará os três estudiosos da Espanha até o Egito, onde, na Grande Pirâmide de Gizé, jaz a chave do maior segredo da humanidade, ciosamente ocultado pelos maçons, os Filhos da Viúva, e o final dessa jornada repleta de revelações surpreendentes será nada menos que o Juízo de Deus, quando será preciso galgar a Escada de Jacó para ir ao encontro da Sabedoria.

7.11.09

Querido diário...

Entrevista que dei à Geração Editorial (ver aqui) por ocasião do lançamento do Diário do Diabo, de Nicholas D. Satan (o próprio), traduzido por mim.


Você teve que vender sua alma ao Diabo para poder traduzir a obra dele?

Claro que sim. Assinei com sangue aquele mesmo contrato que vem anexo ao Diário. Por enquanto, não recebi nada em troca (exceto o privilégio de traduzir o Diário), mas ainda tenho esperança de que Mr. Satan vai honrar os termos do contrato e entregar a minha quota ilimitada de riqueza, fama, poder e mulheres. Afinal, num país que acreditou nas promessas do Collor e do Lula a ponto de elegê-los presidentes, não é nem um pouco absurdo acreditar que o Diabo vai cumprir as dele.

Como este manuscrito recebido pela primeira vez pelo professor americano M. J. Weeks chegou até você?

Lógico que na era da globalização o Capeta também fala e escreve em inglês, por isso o professor Weeks, que publicou o Diário nos EUA, precisou de tradutores nos vários outros países onde o livro está sendo publicado. Existem no Brasil inúmeros tradutores melhores que eu, mas no final Mr. Satan escolheu a mim porque, como eu escrevi um livro sobre Jack, o Estripador, ele acreditou que eu também fosse um maníaco homicida, ou seja, alguém próximo ao coração dele.

É uma artimanha do Demo o fim do mundo como consta no livro O mistério de 2012?

Destruir o mundo, como o próprio Satan explica no seu Diário, não é o tipo de coisa que ele faz, e sim coisa de “Deusão”, ou “Todo-Foderoso”, entre outros apelidos irreverentes com que ele se refere a Deus, o seu ex-chefe. Satan admite que aprecia uma “carnificina básica”, mas que quando passa disso, é ruim para os negócios dele, mais especificamente para a Satancorp, sua empresa, segunda mais antiga do Universo depois da de Deus. Eis o que ele diz após o Dilúvio: “O dano causado pela inundação interrompeu gravemente as atividades no mundo subterrâneo, e ainda não saímos do atoleiro. Ficamos sem comunicação, justo quando precisamos mais dela, pois o Dilúvio resultou num influxo enorme de almas perdidas, e transportá-las para cá tem sido um problema. Todas as minhas boas intenções vão ter de esperar, pois nossa prioridade agora é asfaltar de novo a estrada para o Inferno”.

Portanto, acho mais provável que Mr. Satan tenha tomado conhecimento, por meio dos seus espiões, de que “Deusão” vai destruir o mundo de novo em 2012 e está espalhando a notícia, na esperança de que as ações da Satancorp subam, já que a maior parte da humanidade vai para lá como mão-de-obra escrava.

Você também traduziu o livro Papisa Joana, da Donna W. Cross, que em breve estará nas telas dos cinemas brasileiros. A Papisa também foi uma funcionária do Satanás?

Foi sim, mas ela foi também uma decepção para ele. Como ele diz no ano 590: “Achar um meio de me inserir na Igreja foi mais fácil do que pensei. A ridícula regra de celibato nos monastérios e conventos (nem eu teria tido uma ideia tão cruel) deixou a porta escancarada para a tentação. É de admirar a quantidade de monges e freiras que se inscreveram para ter a chance de uma ou duas relações pecaminosas”. Para ridicularizar de vez a Casa de Deus, Satan fez com que Joana, disfarçada de homem, fosse eleita papa. Mas daí ela quebrou o acordo e começou a ser um bom papa. Foi então que Mr. Satan usou com ela o mesmo artifício que já tinha usado no Jardim do Éden com Adão e Eva (no apontamento do dia 1º do sexto mês do ano um); o resultado foi que a Papisa ficou grávida.

Mas, graças aos fundamentalistas, a religião continua sendo uma das principais ferramentas do Diabo, como ele mesmo diz na pág. 153 do Diário: “Deusão está quebrando a cabeça nas altitudes celestiais para descobrir onde foi que tudo deu errado, enquanto seus leais servidores fazem o meu trabalho por mim. Eu gostaria de ter tido a ideia da religião”.

Qual revelação feita no Diário do Diabo que mais chocou você?

A revelação que mais me chocou foi a que ele fez sobre o Jack, o Estripador, no apontamento datado de 10 de novembro de 1888. Não só ele conta que esse assassino era um agente dele, como também revela a sua verdadeira identidade. Ora, no livro Jack, o Estripador – a verdadeira história, 120 anos depois, eu apontei esse suspeito como um dos menos prováveis, de modo que agora fiquei completamente desmoralizado.

Nicholas também revela no seu diário a aproximação e ajuda que deu à carreira de Bill Gates. Em troca do sucesso – nos seus contratos maquiavélicos – Bill vendeu a alma ao Diabo e deixou que dois funcionários do Satanás implantassem os bugs e os erros nos softwares. Como será que os profissionais da área de TI reagirão diante desta revelação?

Acho que todos eles vão mandar seus currículos para a Satancorp, mas vão se decepcionar, pois a empresa só está dando emprego a hackers. No anúncio que Nicholas D. Satan publicou na Gazeta Celestial para recrutar anjos caídos, está escrito: “Histórico empregatício ruim e ficha criminal são recomendáveis, mas experiência anterior nenhuma é necessária”.

Parece que Satanás gosta do nome “em vão” e de mídia – as páginas policiais, as mais lidas dos jornais, são todas de feitorias dele. Sendo assim, ele deve estar muito feliz com a publicação e o grande sucesso do Honoráveis Bandidos – Um retrato do Brasil na era Sarney, com revelações diabólicas sobre a família que se enriqueceu a custo de muita corrupção?

A família Sarney tem vários contratos com a Satancorp (por exemplo a Lunus, empresa da Roseanta Sarney e do marido dela, é uma das subsidiárias da Satancorp no Brasil, juntamente com a extinta Sudam, a Igreja Universal do Reino de Deus, e inúmeras outras). Foi graças à ajuda de Mr. Satan que o Sarney conseguiu transformar o Maranhão num quintal dele e boa parte do Brasil num feudo seu e da sua família. Mas o problema do corrupto no país da impunidade é o mesmo do bêbado que toma conta do bar: não consegue parar. O Sarney ficou tão deslumbrado que começou a fazer conchavos, cambalachos e negociatas sujas, do tipo que ele fez a vida toda, a fim de subornar tantos acionistas da Satancorp quantos fossem necessários para elegê-lo o novo CEO do grupo, que passaria a se chamar Sarneycorp. A cartada final para conseguir isso seria a eleição da filha dele, Roseanta Sarney, à Presidência da República em 2002. É claro que o Satan não gostou nem um pouco, e resolveu dar uma lição no seu arrogante sócio minoritário, soprando no ouvido do José Serra o esquema fraudulento da Lunus. O resto todo mundo sabe, e está no livro do Palmério: a Polícia Federal apareceu lá, descobriu aquela dinheirama toda, e o sonho da Roseanta presidente do Brasil foi para o ralo. Mas o Sarney já fez as pazes com seu benfeitor, que mexeu os pauzinhos para evitar que fosse afastado da Presidência do Senado. São, no fundo, como irmãos.

30.10.09

Nuvem nada passageira

Todo grande personagem é inspirado por uma entidade que o orienta, auxilia ou abandona. Napoleão por sua estrela (da qual Josefina seria a personificação), Sócrates por seu demônio, Joana d’Arc por suas “vozes”, Sebastião Nery por sua nuvem. Uma nuvem que, por sinal, fez chover na sua horta, tornando-o um dos mais respeitados jornalistas brasileiros e cronista-mor da nossa época, além de professor, advogado, político, e, sobretudo, homem de letras, na acepção mais ampla do termo. Com o presente livro, que acrescentou aos seus 15 anteriores, Sebastião Nery também merece agora figurar entre os memorialistas do calibre de Graciliano Ramos e de Pedro Nava, mas nunca de Brás Cubas, pois a despeito da qualidade machadiana do seu estilo, estas memórias nada têm de póstumas; ao contrário, vibram e pulsam com a energia vital que amplamente tem desmentido, ao longo de 77 anos, o “defuntinho”, como o frágil recém-nascido Nery foi apelidado, tão improvável parecia a sua sobrevivência.

A Nuvem inicia-se em 1944, quando o precoce menino Sebastião é levado de sua Jaguaquara natal para o seminário, e encerra-se aquando do seu retorno da adorada Paris para o Brasil, em 1994. Proporcionando-lhe uma formação acadêmica invejável após dotá-lo do intenso amor ao saber que resultou em erudição caudalosa, a nuvem de Nery conduziu-o pelo mundo inteiro como jornalista e adido cultural, e por todo o Brasil nas campanhas políticas mais efervescentes da nossa volátil democracia, como as de Juscelino em 1955 e das Diretas em 1984. Episódios prosaicos como o primeiro contato com luz elétrica aos 4 anos ou a descoberta do amor, e outros nem tanto, como o encantamento juvenil pelo comunismo e a prisão sob a ditadura militar, tornam-se instantaneamente lições de vida depois de filtrados pela enxuta e elegante prosa neryana. Kubitschek, Brizola, Collor ganham nova dimensão uma vez contemplados pela nuvem. Aliás, poucos nesses 50 anos são os personagens relevantes da nossa história sobre quem Nery não tenha algo relevante a contar, ou mesmo, que não tenha conhecido em pessoa, todos matéria-prima inexaurível para as anedotas com que enriquece incansavelmente o folclore político nacional.

Se erguermos os olhos para acompanhar a trajetória tão rica e fecunda da nuvem de Sebastião Nery, veremos que ela não é nem um pouco passageira: veio para ficar.

25.9.09

Um livro necessário

No centro de São Luís, dois do povo conversam: “Qual a pior coisa do Maranhão?” “A família Sarney.” “Qual a melhor coisa do Maranhão?” “Ser da família Sarney.”

O diálogo faz parte do anedotário maranhense e ganhou sabor nacional quando José Sarney ocupou pela terceira vez a presidência do Senado, em 2 de fevereiro de 2009. Todas as conexões da famiglia, assim mesmo, no sentido mafioso, vieram a público. Um escândalo atrás do outro se revelava.

Com 50 anos de vida pública, o político mais antigo em atividade no país começava sua descida ao inferno. É a partir dali que este livro puxa o fio da meada. E compõe, com as ferramentas do melhor jornalismo, mas sem perder o bom humor, um retrato do Brasil na era Sarney. O Sarney velho de guerra, especialista em urna viciada, cria de coronel, cevado na ditadura, o Sarney da UDN, da Arena, do PDS, do PFL, da desastrada “Nova República”, do estelionato do Plano Cruzado, da cumplicidade no sequestro da poupança promovida por Collor em 1990, do loteamento do setor elétrico. O coronel eletrônico fechado com qualquer governo, enquadrado em formação de famiglia.

Não se forma uma famiglia sem grandes aliados do mesmo naipe. Ele se cercou de gente da pior estirpe, como Edison Lobão, um dos Três Porquinhos — quem se lembra desse episódio grotesco da história recente do Brasil? Honoráveis figuras como Edemar Cid Ferreira, do liquidado Banco Santos; Renan Calheiros, Gim Argello, Agaciel Maia, Michel Temer, Wellington Salgado, Silas Rondeau, uma turma enrolada em tudo quanto é tipo de rolo. Toda a parentalha de sangue e suas histórias inacreditáveis, filho, irmão, neto procurados ou investigados pela Polícia Federal.

Este é um livro necessário. O historiador do futuro contemplará, como num painel, a época em que poucas vezes neste país se constituiu, à margem do poder legal, o verdadeiro e podre poder baseado na corrupção, em todos os seus sentidos. E o brasileiro de bem dos dias que correm entenderá por que às vezes lhe vem a tentação de desistir, por nojo, da política e dos políticos.

Contudo, leitura salutar. Conhecer as causas da náusea ajuda a encontrar o remédio.

(Este texto na orelha do livro não é de minha autoria.)


“Sarney é político sem luz, orador bisonho, poeta menor e escritor medíocre.”
Augusto Nunes, na revista Veja

“Sarney, devolve o Maranhão pro Brasil!”
José Simão, na Folha de S. Paulo

“José Sarney foi um dos piores presidentes da República que o Brasil suportou. Provinciano e medíocre, instaurou no Maranhão uma das mais implacáveis e reacionárias oligarquias já vistas, condenando sua terra e sua gente a condições de miserabilidade, analfabetismo e atraso econômico e social dignas de um soba africano.”
Hélio Fernandes, na Tribuna da Imprensa

20.9.09

Tensão no paraíso

Numa floresta idílica à beira de um lago na Suécia, um grupo de alemães na casa dos trinta anos, monitores de uma colônia de férias, procura escapar da civilização, esquecer o passado amargo e ignorar o futuro incerto. “A Natureza não faz perguntas”, diz o anúncio enigmático respondido pela desiludida Anja, contratada para trabalhar no acampamento de verão, onde conhece e fica fascinada pela etérea e misteriosa Siri, a qual coloca a sua identidade sexual em jogo, enredando-a numa teia confusa e sedutora que faz as duas mulheres entrarem em conflito com o resto do acampamento. As tensões latentes nesse microcosmo da sociedade moderna acabam eclodindo, e o paraíso estival degenera aos poucos num inferno de tortura psicossocial, violência, loucura e assassinato.

História de amor, ficção criminal ou romance social? Para o jornal alemão Die Welt, As camadas mais frias do ar é “uma obra-prima quase clássica de linguagem, tecida com frases cuja impecabilidade, precisão e profundidade bruxuleantemente tenebrosa, são raramente encontradas, e não apenas na geração atual”. As descrições artísticas da natureza e luz nórdicas constituem um elemento fundamental ao texto e à história, e segundo a revista Literaturen, “é difícil imaginar outro autor contemporâneo capaz de conferir expressão literária à magia da Natureza, aos seus humores, vozes e luzes cambiantes, do modo que essa escritora faz, ou que consiga despertar dúvidas tão radicais sobre a natureza emocional humana em meio à exuberância da Natureza”.

Com observações cuidadosamente lavradas sobre seus personagens — cidadãos de um país inexistente desde o colapso da Alemanha Oriental e do Muro de Berlim em 1989, estrangeiros na sua própria terra — e o meio em que se movimentam — cenários e imagens bucólicas que, como nos quadros impressionistas, não estão simplesmente presentes, mas parecem ser o efeito de uma luz incompreensível e sempre indistinta — a autora põe o dedo na ferida aberta da sociedade alemã contemporânea, expondo as fissuras mal vedadas da reunificação das duas Alemanhas. Acima de tudo, no entanto, ela questiona nossa percepção dos homens, das mulheres, do amor, e das convenções sociais que definem identidade e gênero, neste romance estiloso, de narrativa esculpida com a delicadeza precisa de um camafeu, definido como “um tour de force linguístico” e ao qual já foi até atribuída a criação bem-sucedida de uma nova linguagem para o amor.

Antje Rávic Strubel é a grande revelação da moderna literatura alemã. Nascida em Podstam em 1974, foi livreira em sua cidade natal, estudou literatura e psicologia, e trabalhou como iluminadora num teatro nos EUA. Diversas obras suas foram premiadas, inclusive o romance As camadas mais frias do ar, que no ano de 2007 ganhou os prêmios literários Hermann Hesse e Rheingau.

Segundo o autor norte-americano Bruce Wagner, Antje Rávic Strubel “escreve com o ardor frio de um velho mestre, e pinta com a mão firme de um elegante assassino”.

15.9.09

Vamos por partes

Tive recentemente uma conversa divertida e um tanto surreal com os malucos inteligentíssimos do e-Zone sobre o livro Jack, o Estripador - a Verdadeira História, 120 Anos Depois, delito cometido por mim durante um acesso de febre e do qual não guardo lembrança alguma (refiro-me ao livro, não à conversa). O podcast pode ser ouvido aqui.


O cômico e controverso Religulous, de Bill Maher, foi exibido ontem pela HBO mutilado: algumas legendas em inglês, que completavam o áudio nesse idioma, sumiram sem ser substituídas em português, deixando o documentário com quase vinte minutos de imagens sem sentido. Se eu tivesse fé em teorias conspiratórias, provavelmente acharia que os fundamentalistas estão por trás disso; mas só acredita quem não sabe. Sei que a legendagem dos programas da HBO no Brasil é montada em Caracas, uma vez que a incompetência local não basta, é preciso recorrer à de um vizinho ainda mais retrógrado e que fala outra língua. Mais ou menos como se os cidadãos da Somália recorressem aos da Suazilândia (cujo idioma é o siswati) para que lhes escrevessem placas em somali. Não admira que cada vez mais canais do grupo HBO (History Channel, A&E Mundo, etc.) estejam sendo dublados, para horror dos que apreciam programas e filmes do modo como foram concebidos por seus autores. Aliás, com a aquisição cada vez maior de canais a cabo pela classe C, em breve só ouviremos atores gringos falando "vai se danar" ao invés de "fuck you", embora com outros sotaques além do carioca, agora que não existe apenas a Herbert Richers no ramo, infelizmente.


Por falar em coisas “religículas”, a edição 2126 da Veja foi uma grata surpresa, com sua matéria de capa absolutamente imparcial — portanto crítica — sobre Edir Macedo Bezerra e sua quadrilha de sanguessugas engravatados, após ter durante anos servido de palanque ao Jim Jones tupiniquim. Será que Veja viu a luz? Não creio. Mais provável é que tenha sentido para onde o vento sopra, agora que o pseudobispo está (de novo) na mira da justiça. Do mesmo modo o famoso semanário, que elevou Collor a “caçador de marajás” (e não a Globo, ao contrário do que disse o seu agora querido amigo Lulla), não hesitou em sacudir a árvore quando viu o maracujá maduro para cair. Pena que essa nova intervenção do Ministério Público provavelmente vai dar em nada, outra vez, visto que o Bezerra de Ouro já roubou o suficiente para comprar impunidade por três vidas. O consolo é que isso tudo parece estar ao menos arranhando-o onde mais lhe dói: o bolso. Soube de fonte segura que a rede Record, menina dos olhos cobiçosos do mega-charlatão, anda enfrentando problemas de caixa, pois despediu boa parte da equipe de produção, cortou o terceiro horário de novelas e engavetou projetos como a minissérie sobre Jânio Quadros, alardeada com tanta insistência ao longo do primeiro semestre. Tarda mas não falta? Nisso eu gostaria de ter fé.

1.9.09

Proto-Hamlet

O esplêndido romance Gertrudes e Cláudio, de John Updike, publicado em 2000 nos EUA e em 2001 no Brasil, pretende reconstruir os acontecimentos que antecederam a tragédia shakespeariana Hamlet, a saber: o triângulo amoroso formado pelo rei da Dinamarca, sua esposa Gertrudes e seu irmão Cláudio, que por meio de fratricídio usurpa a coroa e desposa a cunhada viúva. Esses personagens são, respectivamente, pai, mãe e tio do príncipe Hamlet, que dá nome à mais célebre tragédia do Ocidente ao lado de Édipo Rei.

Gertrudes e Cláudio é divido em três partes, e cada uma delas se inicia com a mesma frase: “O rei estava encolerizado”. Na primeira parte, o rei em questão é Rorik, pai de Gertrudes, na segunda trata-se de Horvendile, marido de Gertrudes, na terceira é Cláudio, segundo marido de Gertrudes. A narrativa começa quando a princesa adolescente é instada pelo pai a se casar com Horvendile, guerreiro sanguinário e irritantemente cheio de si, tornando-o o próximo rei da Jutlândia ou Dinamarca, e termina quando o filho dela, Hamlet, que interrompeu seus estudos em Wittemberg para comparecer às segundas núpcias da mãe, aceita ficar em Elsinore. Ou seja, o romance tem fim ao ter início a peça.

 

Apesar disso, John Updike procura não macaquear o Bardo, a começar pelo ritmo, bem diferente ao da peça. A ação se desenrola morosamente, com calma e precisão, tal como o amor outoniço dos protagonistas, numa prosa belíssima, notavelmente bem traduzida para o português por Paulo Henrique Britto, e prenhe de elementos e descrições, por vezes excessivos, que remetem à Escandinávia medieval. Para dar maior veracidade à sua narrativa, o autor procurou situá-la num contexto histórico muito bem definido, tal como Shakespeare o fez, embora as sucessivas montagens e versões cinematográficas (como a da foto, dirigida por Kenneth Branagh) o tenham subvertido. Outro artifício interessante para obter essa veracidade foi que em cada uma das três partes os mesmos personagens são chamados por nomes diferentes, segundo as versões da lenda de Hamlet fornecidas por Saxo Grammaticus, François de Belleforest, e Shakespeare. Destarte, a heroína é Gerutha e Geruthe antes de ser Gertrudes, o herói é Feng e Fengon antes de tomar o nome latino Cláudio ao assumir a coroa, Horwendil é Horvendile e depois Hamlet, seu filho Amleth torna-se Hamblet e então Hamlet, e Corambis passa a ser Polônio.

Sendo a ótica não mais a de Hamlet, com a qual nos acostumamos, mas a de sua mãe e do seu padrasto, o amor adúltero deles é tão puro quanto isso possa não soar contraditório. Estamos, afinal, na Idade Média, em que o amor cortês consagrou, através de poemas e trovas, os amores ilícitos de Lancelote e Ginevra, Tristão e Isolda, sendo o adultério visto como uma reação do sentimento ao casamento de conveniência, da natureza contra a ordem social. Difícil não sentir ternura por esse casal maduro. “Já passamos da idade da beleza, dizem os jovens, mas nossos sentidos nos afirmam o contrário.” Cláudio comete assassinato, mas não é um assassino, assim como Gertrudes comete adultério sem ser uma adúltera. “A incursão dela pelo desafio e protesto do adultério fora, tal como os anos que ele passara vagamundeando pelas terras meridionais, um desvio, uma exploração de sua própria natureza que, uma vez realizada, não precisaria ser retomada jamais.”

A cilada do maniqueísmo, não obstante, também é evitada por Updike. Embora Horvendile seja frio — e todo marido frio mereça ser corno —, ele é também um rei exemplar, muito cristão e inteligente, e um esposo responsável, inda que tedioso e insensível. Ele representa a nova ordem trazida pelas guerras e consolidada pela Igreja; Gertrudes encarna a Escandinávia semi-pagã, e Cláudio, homem viajado e embebido das tradições meridionais da Europa, representa o amor cortês, ao qual ela sucumbe, pois “não estava acostumada a lidar com homens com quem ela pudesse conversar e que estivessem dispostos a ouvi-la”.

Horvendile tanto não é tolo, que descobre com certa facilidade que seu irmão e sua esposa, de meia-idade ambos, começaram a traí-lo. Confronta o irmão, acusa-o e promete acabar com ambos, e com o velho Polônio, que alcovitou os amantes. Este, que já tem o hábito de escutar por detrás de tapeçarias — o qual custar-lhe-á a vida mais tarde —, dá a Cláudio os conselhos necessários para que os salve a todos. O rei, segundo ele, “não verá necessidade de tomar decisões apressadas em relação a nós e à rainha, tamanha sua confiança na solidez de seu poder”. Isso dá tempo a Cláudio de eliminar o irmão adormecido, deitando-lhe veneno ouvido adentro, semeadura da qual brota, por assim dizer, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, que terá início com o fantasma do monarca assassinado exortando o filho à vingança, aparição aliás prefigurada no livro de Updike:

A fantasia corria solta; dizia-se que as sentinelas que faziam a ronda noturna sobre as muralhas do castelo tinham visto uma aparição trajando armadura completa.

Embora o conhecimento da peça não seja indispensável à compreensão de Gertrudes e Cláudio, é evidente que proporcionará um prazer bem maior à leitura do romance, na medida em que este pretende explicar certas situações da peça. Por exemplo, a complacência do casal real com Polônio e o incentivo ao casamento da filha deste, Ofélia, com Hamlet, teriam sua origem na cumplicidade de Polônio no regicídio. Horvendile, que não gosta do velho conselheiro tagarela, diz sobre Ofélia, destinada a ficar louca na peça: “Há em seu juízo uma rachadura que, no advento de qualquer circunstância mais séria, pode abrir-se de todo”. Gertrudes, em contrapartida, ama a jovem como à filha que nunca teve, ou como à jovem que ela mesma já não é, dá no mesmo. Em seu diálogo com a moça, um dos mais belos do livro, falam de Hamlet.

— Às vezes — explicou Ofélia — ele me elogia de modo tão excessivo que parece estar zombando de mim. Recita poemas, e às vezes até os escreve.

— Também Cláudio escreve versos — Gertrudes ousou revelar. — Os homens têm uma natureza mais dividida que a nossa. Passam da lama para o pico da montanha, em sua imaginação, sem jamais pisar num chão intermediário. Para justificar as exigências do corpo, sentem necessidade de exaltar o objeto dessas exigências, transformando-nos em deusas, em impossibilidades sublimes, ou então nos tratam como lama. Meu filho tem muita imaginação, e desde pequeno sente um fascínio pelo teatro. Ainda que desempenhe o papel de apaixonado até as últimas consequências, isso não quer dizer que esteja sendo falso.


Embora ausente em Wittemberg na maior parte do romance, o personagem do príncipe não é poupado. Este proto-Hamlet de John Updike funciona também como um anti-Hamlet, que em tudo desmente o sweet prince. Fortemente neurótico, é da mãe, contra quem foi hostil desde o nascimento, que ele recebe um implacável diagnóstico:

À medida que foi crescendo, suas descobertas dos mistérios da natureza desencadearam nele, até onde uma mãe pode perceber tais coisas, reações mais de espanto e repulsa do que de entusiasmo. Para ele, as mulheres não são assunto de maior interesse; ele próprio possui em tal grau o princípio passivo que este não lhe parece tão atraente em outrem.

Ignorado pelo pai, o príncipe foi educado pelo bobo da corte Yorick, de quem teria absorvido o fascínio por teatro e representação. Cláudio, que não tem filhos, sente-se paternalmente predisposto com relação ao rapaz.

Na verdade gosto dele, do jovem Hamlet. Creio que posso lhe dar algo que seu pai jamais lhe deu — eu e ele fomos ambos vítimas daquele brutamontes obtuso. Somos parecidos. A sutileza dele, que mencionaste, é muito semelhante à minha. Nós dois temos um lado sombrio, o desejo de viajar, de ir para longe desta terra atrasada e nevoenta, onde os carneiros parecem pedras e as pedras parecem carneiros. [...] Somos ambos vítimas da pequenez dinamarquesa, a sede de sangue dos viquingues reprimida pelas exterioridades do cristianismo, o qual ninguém aqui jamais compreendeu.

Gertrudes, que como toda mãe, sabe a quem deu à luz, discorda.

Eu o conheço. Ele é frio. Tu, não, Cláudio. És cálido, como eu. Gostas de ação. Queres viver, aproveitar o presente. Para meu filho, tudo é falso, mera encenação. Ele é o único homem em seu próprio universo. Se existem outras pessoas dotadas de sentimentos, isso apenas torna o espetáculo mais agradável, ele talvez concorde. Até mesmo a mim, que o amo com amor inevitável de mãe, desde o momento em que a causa de minhas dores foi colocada em meus braços, gemendo e chorando em memória do sacrifício por que nós dois havíamos passado, mesmo a mim ele vê com desdém, como prova de suas origens naturais, prova de que seu pai sucumbiu à volúpia.

Revelando-se mau profeta, Cláudio insiste que o enteado permaneça em Elsinore. Gertrudes cede, mas a contragosto.

Temo a guerra que ele traz dentro de si. Tu e eu estabelecemos a paz, na medida do possível, após um acidente trágico, e em paz a Dinamarca confirmou teu direito ao trono. Meu filho, com seus trajes negros e sua barba vermelha, vai perturbar todo esse equilíbrio complacente.

Updike encerra seu livro com o veredicto de um certo William Kerrigan:

Se deixarmos de lado o assassinato e seu encobrimento, Cláudio parece ser um rei competente; Gertrudes, uma rainha nobre; Ofélia, um tesouro de doçura; Polônio, um conselheiro maçante, mas não malévolo; Laertes, um rapaz como os outros. Hamlet arrasta-os todos para a morte.

9.8.09

Papisa Joana

Ano de 814. No mesmo dia da morte do lendário Carlos Magno, nascia na aldeia de Ingelheim a única mulher da História destinada a ser papa: Joana.

Era a Idade das Trevas, uma época brutal, de ignorância, miséria e superstição sem precedentes. Os países europeus como os conhecemos não existiam, nem tampouco seus idiomas, mas tão-somente dialetos locais, sendo a língua culta o latim; a morte do imperador Carlos havia mergulhado o Sacro Império Romano num caos de economia falida, guerras civis e invasões por parte de viquingues e sarracenos.

A vida nesses tempos conturbados era particularmente difícil para as mulheres, que não tinham quaisquer direitos legais ou de propriedade. A lei permitia que seus maridos batessem nelas; o estupro era encarado como uma forma menor de roubo. A educação das mulheres era desencorajada, pois uma mulher letrada era considerada não apenas uma aberração, mas também um perigo.

Decidida a não se conformar com as limitações impostas ao seu sexo, Joana se disfarça de homem e ingressa num mosteiro beneditino, sob o nome de “irmão” João Ânglico. Graças à sua inteligência e determinação, ela rapidamente se destaca como erudita e médica, até que, sob a ameaça de ter seu disfarce revelado, parte para Roma, onde se torna médico do próprio papa. A partir de então, começa a ascensão de Joana rumo ao mais glorioso trono do Ocidente; porém, antes de cumprir seu destino, ela terá de superar obstáculos tremendos, como o seu amor pelo conde franco Gerold e as armadilhas do maquiavélico cardeal Anastácio, seu arquirrival, enquanto luta para não se enredar na teia de intrigas, corrupção e disputas pelo maior poder religioso do mundo.

A papisa Joana é um dos personagens mais fascinantes de todos os tempos, e um dos menos conhecidos. Embora hoje negue a existência dela e de seu papado, a Igreja Católica reconheceu ambos como verdadeiros durante a Idade Média e a Renascença. Foi apenas a partir do século xvii, sob crescente ataque do protestantismo incipiente, que o Vaticano deu início a um esforço orquestrado para destruir os embaraçosos registros históricos sobre a mulher papa. O desaparecimento quase absoluto de Joana na consciência moderna atesta a eficácia de tais medidas.


23.3.09

Habemus Papissam

Meus últimos três meses foram dedicados quase que exclusivamente à tradução do belo e polêmico Papisa Joana, romance histórico de Donna Woolfolk Cross que deverá ser lançado por aqui em breve, pela Geração, e cuja versão cinematográfica já está no forno.

Existem argumentos bastante convincentes a favor e contra a existência dessa controversa personagem, que teria sido a única mulher na História a cingir, em plena Idade das Trevas, a coroa papal. Como o lançamento do livro no Brasil promete reacender essa discussão, não vou me ocupar dela no momento, limitando-me a citar um trecho desse interessante bildungsroman — que aliás figurou por bom tempo, se é que não figura ainda, entre os dez livros preferidos na Alemanha.

No dia da eleição, Joana foi rezar na igrejinha inglesa que havia sido a sua quando chegara a Roma.

Reduzida a cinzas pelo grande incêndio, a igreja fora reconstruída com materiais espoliados de antigos templos e monumentos romanos. Ao ajoelhar-se diante do altar-mor, Joana viu que o pedestal de mármore que o sustentava exibia o inequívoco símbolo da Magna Mater, antiga deusa da terra, adorada por tribos pagãs numa época imemorial. Abaixo do desenho tosco havia uma inscrição em latim: “Neste mármore foi oferecido incenso à Deusa”. Obviamente, quando a grande laje de mármore fora levada para lá, ninguém entendera o símbolo nem a inscrição. Isso não era surpresa alguma, pois muitos clérigos romanos mal sabiam ler, portanto eram incapazes de decifrar a caligrafia antiga e muito menos de compreender-lhe o significado.

A incongruência do altar sagrado e sua base pagã pareceu a Joana um símbolo perfeito de si própria: sacerdote cristão, ela ainda sonhava com os deuses pagãos da sua mãe; homem aos olhos do mundo, era atormentada pelo seu coração secreto de mulher; em busca da fé, vivia dividida entre o desejo de conhecer Deus e o medo de que Ele não existisse. Mente e coração, fé e dúvida, vontade e desejo. Será que as contradições dolorosas da sua natureza algum dia se reconciliariam?

14.12.08

Napoleoniana II

Mais um livro mal traduzido sobre o Grande Homem. A vítima desta vez é o Napoleão de Thierry Lentz, coisinha de cento e poucas páginas da coleção francesa Que sais-je?, para estudantes primários. O algoz é uma tal Constancia Egrejas.

Já ao folhear o livro na livraria, deparei com a seguinte bobagem na última página: “a burguesia o sustentou tanto que suas guerras tiveram sucesso”. O original, que desconheço, decerto diz "contanto que suas guerras tivessem sucesso”, sendo fato notório que a burguesia abandonou o imperador da França quando este começou a perdê-las.


Egrejas também ignora que nomes de reis e príncipes (menos os contemporâneos, exceção feita a Balduíno da Bélgica) devem ser aportuguesados. As esposas de Napoleão foram imperatrizes, portanto são Josefina e Maria Luísa, não Joséphine e Marie-Louise (ou Maria Louisa, como esta arquiduquesa era chamada em sua Áustria natal). A enteada dele, Hortense, foi rainha da Holanda, portanto Hortência. Todos os irmãos dele foram reis e príncipes, de modo que Joseph é José, Lucien é Luciano, Pauline é Paulina, Jérôme é Jerônimo, etc. Essa tradutora desconhece ainda quem foi Puchkin (a tradução conserva "Pouchkine", como o dramaturgo russo é chamado pelos franceses), que o rio Rhône é o Ródano, entre outras omissões graves. A palavra règne é constantemente traduzida como "reino", não como "reinado", originando frases sem sentido como "O reino imperial tornou-se uma epopéia" (pág. 158).

A maioria das pessoas que prestam serviço de tradução são mulheres, pois é um trabalho que pode ser feito de casa. Existem excelentes tradutoras no Brasil, mas não de História. Eu sei bem, pois prestei serviço para o The History Channel durante anos, e nunca vi uma tradutora que tivesse conhecimento profundo ou mesmo interesse particular nos assuntos históricos que vertia para o português. Mulher odeia História. Não o ignorava o grande Machado ao observar no Dom Casmurro: “Respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos”. Era de se esperar, no entanto, que uma editora universitária fosse mais cuidadosa com suas traduções que um canal de TV a cabo.

Querem a prova de que isso é verdade e não machismo? Comparem duas biografias do Grande Homem lançadas pela Jorge Zahar Editor, ambas em 2005.

A primeira, Napoleão – Uma Biografia Política, de Steven Englund, não só tem o já mencionado problema de tradução de nomes, como também mostra uma caricatura de Napoleão bebê roubando a coroa de Luís XVIII enquanto este dorme, e embaixo a inscrição “Roubando a coroa do papa” (decerto o original dizia papa, “papai”). Quem traduziu? Maria Luiza X. de A. Borges.

A segunda é o formidável Napoleão – Uma Biografia Literária, de Alexandre Dumas, que não apresenta problema algum de tradução e, ao contrário, é um primor de correção histórico-lingüística em português. Quem traduziu? André Telles.

I rest my case, Your Honor.

A Globo não é mais a mesma; graças a Deus!

Muitos anos atrás a rede Globo brindava seu público com teleteatros, talvez para se redimir por seu fundador, Roberto Marinho, ter sido um dos maiores lacaios da Ditadura Militar que tanto perseguiu o teatro neste país. Anos depois, sem a Ditadura, mas com a imbecilidade do público bem arraigada graças ao retrocesso cultural imposto pela Ditadura, acabaram-se os teleteatros da Globo, suas novelas ficaram mais numerosas e ainda menos inteligentes, e estreou o Big Brother, sem dúvida o ponto mais baixo já atingido por qualquer mídia em qualquer sociedade ou época. A minissérie Capitu, cujo último dos seus cinco episódios foi exibido ontem, é uma felicíssima retomada dos teleteatros da década de 70, com recursos técnicos de hoje.

A idéia de traduzir as insinuações e entrelinhas de Machado de Assis usando recursos teatrais e alegorias burlescas não é nova — houve nos anos 80 uma tentativa patética de verter nesse formato o Memórias Póstumas de Brás Cubas —, mas nunca foi tão bem-sucedida quanto nesta versão de Dom Casmurro adaptada por Euclydes Marinho para a TV. A direção de Luiz Fernando Carvalho é nada menos que perfeita, o elenco é impecável e a fotografia de encher os olhos. As vinhetas mostrando pedaços de fotos e recortes de jornais antigos retrata maravilhosamente as recordações fragmentárias do memorialista Bentinho. Este recebe seu apelido num trem da Central, não num bonde, e o Otelo a que assiste não é o de Verdi, mas o de Orson Welles, anacronismos expressionistas que acentuam melhor que qualquer montagem naturalista, de época ou não, a universalidade e perenidade do tema. O genial Bruxo do Cosme Velho teria ficado orgulhoso.

Aliás, leio na Veja que o subgênero da telenovela anda perdendo audiência, coisa impensável anos atrás. Notícias como essa, aliadas a obras da qualidade de Capitu, tornam mais fulgurante a luz que desponta no fim do túnel.

4.11.08

Para calar a boca dos pseudojornalistas

O relançamento do livro Cale a Boca, Jornalista!, de Fernando Jorge, não poderia ser mais oportuno que agora, quando o desencanto com a democracia, causado pela corrupção do governo petista, tem levado não apenas nosso ignorante e desmemoriado povo, mas até indivíduos supostamente bem informados, como jornalistas, a lançar olhares nostálgicos para a criminosa ditadura militar brasileira, enxergando nela uma era dourada em que “havia ordem e ninguém roubava”.

Um texto inacreditável tem circulado pela internet, da autoria de um tal Paulo Martins, suposto jornalista que escreve ou escrevia para a Gazeta do Paraná. Transcrevo aqui só uns trechos do factóide, pois meu estômago é fraco:


Não lembro de ter sido perseguido, como insistem em afirmar que era o hábito da época aqueles que, por falta de argumento para uma retórica razoável, apelam sem disfarces para o desvirtuado e corrosivo “ouvi dizer”.

Que ditadura era aquela que me permitia votar? Que nunca me proibiu de tomar uma cervejinha num desses bares da vida após as vinte e três horas? Ou num restaurante de beira de estrada?

Que ditadura era aquela que (eu não fumo) nunca proibiu quem quer que seja de fumar? Que ditadura era aquela que nunca usou cartão corporativo para as primeiras damas colocarem até botox no rosto ou para outros roubarem milhões de reais do povo brasileiro?

Vi, sim, perseguições, porém contra elementos de alta periculosidade à época (...)


Minha reação ao ler tamanha sandice foi não ter reação alguma. O que responder a alguém que acha que não houve ditadura militar no Brasil só porque não lhe proibiam que fumasse ou que bebesse cervejinhas? (difícil é entender por que uma ditadura proibiria tais coisas...) O que responder a alguém que acha que não houve perseguições só porque ele não foi perseguido, dessa forma escarnecendo do sofrimento das pessoas que, sim, foram perseguidas, ou tiveram parentes, cônjuges, amigos arbitrariamente presos, torturados, assassinados, apenas por não querer uma ditadura neste país? Que dizer a quem afirma que havia eleições livres durante os governos militares? Valeria a pena mandar um infeliz desses — cujo prenome me envergonho de compartilhar — se informar minimamente sobre as atrocidades cometidas nos anos 70 contra pais de família, operários, profissionais liberais, intelectuais, estudantes, mas principalmente contra seus colegas de profissão? Valeria a pena o incômodo? Decidi que não.

Vale a pena, no entanto, alertar a nova geração contra os pseudojornalistas; pois, que um ignorante acredite que só terroristas perigosos foram perseguidos pelo governo totalitário, é estupidez; mas que divulgue tal estupidez através de um jornal, influenciando outros ignorantes, é pernicioso.

Por isso o livro de Fernando Jorge volta em tão boa hora. Nada como relembrar as censuras, perseguições, encarceramentos, socos, coronhadas, choques elétricos nos testículos, paus-de-arara, tiros e outros argumentos impingidos contra homens de imprensa pelos políticos de uniforme que se autodenominavam majores, coronéis e generais. Relembrar para quê? Para demonstrar à farta que todos os que praticam jornalismo reacionário, a exemplo do pseudofilósofo Olavo de Carvalho — escrevinhador de uma autobiografia intitulada O Imbecil Coletivo —, nada fazem além de lamber botas que eventualmente lhes chutarão a cara.


Cale a Boca, Jornalista! demonstra também quão pouco aprenderam esses jornalistas lambedores de coturnos com a experiência sofrida pelo ícone deles, Carlos Lacerda, o corvídeo que, após crocitar incansavelmente contra quatro presidentes democráticos e constitucionais, ajudando assim a precipitar o nefasto Golpe de 64 na esperança de que seus amigos militares o empoleirassem na Presidência, acabou depenado por eles.

A pesquisa de Fernando Jorge vai além da selvageria fardada, abrangendo os primórdios do ódio ao prelo no Brasil colonial — com destaque para o ínclito José Bonifácio mandando esbordoar o editor do periódico A Malagueta —, sem deixar de fora jornalistas que perseguiram jornalistas, como o vampiro da democracia Carlos Lacerda, que fez apreender edições do Correio da Manhã e outros jornais quando governador da Guanabara, em 1961.

Esta quinta edição de Cale a Boca, Jornalista! traz ainda reflexões pertinentes sobre governo, como a total inutilidade do Senado:

Devemos adotar o unicameralismo, a estruturação do parlamento numa só câmara ou assembléia legislativa. O Senado no Brasil é uma excrescência, um desperdício, macaquice do sistema norte-americano. É um peso morto, um parasita, não vale nada, apenas escorcha o povo. Custou aos cofres públicos, no ano de 1987, mais de três bilhões de cruzados! Sustenta mais de seis mil funcionários! A gráfica do Senado, por exemplo, tem 1.583, e entre eles a colunista social Consuelo Badra. Suas Excelências, os senadores, possuem um mandato de oito anos... Todos mamando nas tetas do Estado. Para quê? Basta uma câmara de deputados. Não há coisa alguma capaz de impedir que esta execute as funções privativas do Senado, como autorizar, por exemplo, a obtenção de empréstimos externos a estados e municípios, ou aprovar a designação de ministros dos tribunais superiores.

25.10.08

Outubro dos Paulos

Os lançamentos de autores nacionais da Geração Editorial neste mês foram todos escritos por Paulos: Suicídio, de Paula Fontenelle, As Maluquices do Imperador, de Paulo Setúbal, e Jack, o Estripador, do humilde mantenedor deste blogue. Recomendo esses três livros paulinos.


Ela estava de férias em Miami quando recebeu a ligação da irmã informando que o pai tinha se matado com um tiro na cabeça. Antecipar a volta representou uma nova fase. A jornalista Paula Fontenelle queria saber o por que e não mediu esforços. “O que leva alguém a tirar a própria vida? Este ato, pode ou não ser prevenido?” Na busca por explicações, Paula voltou à infância para resgatar o passado do pai. Conta detalhadamente das dificuldades dele, do medo de falhar, da forma rígida de ser, agir, das fragilidades e dos sentimentos recolhidos que ele transportava para o alcoolismo, como um refúgio. Em Suicídio - O Futuro Interrompido há histórias, relatos de quem esteve à beira de cometer o ato, pesquisa e um alerta com informações sobre prevenção.



“Foi numa noite de gala, aniversário do príncipe regente, que D. Pedro viu no palco, pela primeira vez, a bailarina entontecedora. Era uma francesinha de matar. Uma boneca de luxo, toda pluma, frágil como um bibelô. E tão loira! E tão fresca! E dona duns olhos tão grandes, tão liricamente azuis!” O trecho fala do primeiro amor de D. Pedro, quando, aos 17 anos, teve a primeira loucura da adolescência e aventurou-se na paixão por Noemi. Em todos os capítulos as histórias da família real são contadas em detalhes, rico vocabulário e com muito humor.



O que torna Jack mais interessante que todos os outros assassinos seriais é o fato de nunca ter sido preso e de não termos idéia de quem ele foi, nem por que cometeu seus atrozes assassinatos. Ele é uma sombra, um enorme ponto de interrogação traçado com sangue. O Estripador se transformou em lenda porque os mitos brotam das lacunas deixadas pela História. Tentar adivinhar a identidade do criminoso de Whitechapel ainda é a principal pergunta ou mistério policial da atualidade.
.
Mais detalhes na página da Geração.

13.10.08

Alice no país da suruba e do amadorismo

No tempo em que morei na ultraprovinciana Londrina — período que costumo denominar minha Idade das Trevas pessoal — fui levado a participar dum desses chamados encontros de casais, em que casais ouvem outros casais falarem sobre como é estar casado. Sendo o abominável evento promovido por uma paróquia, não me surpreendeu sua péssima organização; o que sim me surpreendeu foi tamanha desorganização ser deliberada e não acidental. Segundo um dos (des)organizadores, pessoas que já conheciam bem este ou aquele ofício no evento não eram reaproveitadas na mesma ocupação a fim de evitar que se tornassem “profissionais”, o que supostamente prejudicaria o seu “espírito de entrega”, ou algum outro clichê católico de que, por estar afastado, graças a Deus, da religião, não me recordo agora.

Em outras palavras, o amadorismo seria uma coisa mais agradável a Deus que o profissionalismo. Não admira Ele ser brasileiro.

Esse mesmo espírito retrógrado predomina até nas modernas telecomunicações do Brasil, como demonstra a baixíssima qualidade de Alice, a nova série brasileira da HBO — pronunciada êitch-bi-ou pelos macaquinhos daqui em vez de agá-bê-ó —, que está desembolsando nada menos que um milhão por episódio dessa produção, cujos quadros são todos ocupados por amadores, a começar pelo elenco. Alice trata de uma garota do interior que vem a São Paulo e se deslumbra com este suposto “país das maravilhas”, dando a entender que o propósito oculto (mas nem tanto) da série é incentivar o turismo sexual na megalópole, assim como a igualmente execrável Mandrake (também da HBO) parecia ser um cartão-postal do Rio de Janeiro como paraíso de popozudas desfrutáveis.

A forma que o amadorismo autoral de Alice encontrou de tornar São Paulo a nova Cidade Maravilhosa foi transformar as paulistas em cariocas, ou no que as cariocas são para a mídia: libertinas. A tia de Alice é lésbica e maconheira, suas amigas e vizinhas são promíscuas, sua circunspeta chefe transa com o motorista paraguaio dentro do carro, Alice mal chega a Sampa e já começa a enfeitar a testa do noivo que ficou para trás, em Palmas, durante rodadas de sexo casual com sujeitos que mal conhece. “Venha para São Paulo e você vai sair da secura”, é o que esse programa de quinta categoria parece apregoar.

Os produtores se orgulham de não ter ocupado pessoas famosas no elenco; poderiam ter feito uma concessão aos atores de talento. Para o diretor, os intérpretes de Alice, por serem estreantes, são mais “intensos”. Eles são mesmo intensamente ruins, inclusive a protagonista, Andréia Horta, escolhida exclusivamente por ser o que os americanos chamam de um fine piece of ass. Dizer que os diálogos são infantis é insultar a inteligência das crianças. Nenhum personagem, a julgar pelo nefasto roteiro, tem QI acima de 5. Se a idéia era que os personagens falassem como todo mundo fala, o resultado foi que eles falam como todo imbecil fala.

Que fim levou a excelente equipe de Filhos do Carnaval, a única coisa boa produzida pela HBO nestas bandas?

17.9.08

15º Porto Alegre em Cena

Começou bem o meu acompanhamento do 15º Porto Alegre em Cena, com o imperdível espetáculo Conceição, no qual dançarinos do grupo recifense Experimental fazem de seus belos corpos ondas do mar, pontes, rãs alienígenas e sacrários.





Em Fausto, a atração mais esperada desta edição do melhor festival de teatro do Brasil, o lituano Eimuntas Nekrosius subverte mais uma obra clássica, como fez brilhantemente em 2006 com seu Otelo. O texto de Goethe é mero pretexto, ninguém reage conforme se espera. Em situações de angústia e estresse, os intérpretes empunham objetos inúteis, tropeçam a esmo, repetem gestos sem sentido à exaustão. Nem tudo são alegorias — como o osso gigante que alude ao diabo, ao cão —, é perda de tempo procurar entender ou interpretar cada abstração ou elemento cenográfico insólito, cumpre tão-somente ver e sentir.


O diretor britânico Peter Brook não fez jus à sua reputação com The Grand Inquisitor. Sim, Bruce Myers declama muito bem o seu monólogo, ninguém discute isso, mas o texto não é teatro, é um mero capítulo do romance Os Irmãos Karamázovi, em que ele, Myers, faz de narrador e personagem ao mesmo tempo, sem nuanças entre um e outro. "Então ele disse: 'Tal coisa'." Sorry, não funciona.








Ontem foi a vez da montagem argentina da peça do norueguês Jon Fosse, La Noche Canta Sus Canciones, cuja excelência, realismo, concisão e tensão permanente demonstram que não só de Ibsen vive a dramaturgia da Noruega.

26.8.08

Napoleoniana

Não acreditei nos meus olhos ao folhear Os Crimes de Napoleão. O autor do factóide, um tal Claude Ribbe, pretende que um dos maiores estadistas da História usou câmaras de gás para eliminar seus oponentes, prefigurando Hitler. “Será por falta de hospícios que lunáticos andam soltos por aí publicando livros?”, pensei.

A lembrança de que eu conhecia o nome desse potoqueiro restituiu-me a fé na minha visão. Minha namorada me presenteou, anos atrás, com uma biografia do general Dumas, cujo autor, que não é outro senão o tal Ribbe, afirma que esse oficial, negro, foi terrivelmente discriminado e injustiçado por Napoleão. Nada mais absurdo, tendo seu filho Alexandre, pai dos Três Mosqueteiros e grande admirador do seu, nutrido veneração incondicional pelo imperador, ao qual enalteceu numa peça em seis atos, de 1831. Esse Ribbe, portanto, não passa de um recauchutado propagador da lenda negra de Napoleão como Ogro da Córsega, criada pelos feudalistas do século XVIII e mantida acesa até hoje pelos medíocres de todas as denominações.

(O tradutor dos supostos Crimes é um tal S. Duarte, que, coincidência ou não, traduziu outro panfleto antinapoleônico de autoria do jingoísta inglês Paul Johnson. Em ambos a esposa de Bonaparte é transcrita como “Joséphine”, não como “Josefina”, sinal claro de que o tradutor é tão ruim quanto os livros que traduz.)

Também absurdo, embora divertido e incomparavelmente mais bem escrito, é o outro lado da moeda, El alma de Napoleón, tradução espanhola do panegírico de Léon Bloy, para quem o imperador era “a face de Deus nas trevas”, o grande precursor do Cristo guerreiro descrito no Apocalipse. Segundo Bloy, diz o Espírito Santo:

Vuestro Emperador ha hecho lo que tenía que hacer, muy exactamente, como los soles o los animales, sin comprender ni saber, y la magnificencia que apareció en él antes de que cayese no era, con anticipación, sino un reflejo infinitamente pálido de mi propio esplendor.

Esses dois extremos, a lenda áurea e a lenda negra do grande Corso, são magistralmente depurados em Napoleão Bonaparte – Imaginário e Política em Portugal (c. 1808-1810), um dos melhores livros sobre o imperador, e de longe o melhor já escrito por brasileiro, no caso uma professora da UERJ de nome extenso como um subtítulo, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves.

Lenda dourada ou lenda negra, a exaltação ou o repúdio alimentam-se de fatos resultantes da mesma trama. Tanto pelo Ogro quanto pelo de Napoleão, o Grande, vislumbra-se um perfil que aponta para uma origem nebulosa, uma rápida ascensão ao poder, uma sede de dominação, uma vontade férrea e um declínio fulminante. Por conseguinte, os mesmos elementos combinados forjaram tanto a imagem do herói, como a do anti-herói.


Para os portugueses, invadidos por ele em 1808, Napoleão era, além do anticristo, “parido por mãe que a cão e gato ofertava d’amor venal tributo”,

Um homem com cabeça de donato
Tendo por barretina uma caneca,
Os olhos gázeos, boca de alforreca,
O pescoço estendido como gato.

Outros lusitanos, no entanto, como o poeta romântico Francisco Joaquim Bingre, entreviam o herói conquistador no lugar do tirano invasor.

Na Córsega nasceu o bravo Marte
O astro de Paris de França a glória,
O grande Napoleão de alta memória
O sem-pavor soldado Bonaparte
As águias de seu ínclito estandarte
Fez voar sobre as asas da vitória
Sua fama nas páginas da História
Não morreu, inda vive em toda a parte.

23.8.08

Opus incertum

Acho que Ibsen não escreveu sua peça Imperador e Galileu para o palco mais do que o foram Macário, de Álvares de Azevedo, ou A Tentação de Santo Antão, de Flaubert, obras mais afins de Platão que de Sófocles. As outras peças do norueguês, tão enxutas e econômicas, pouca semelhança apresentam com Imperador e Galileu, que narra a vida do ícone neopagão Juliano, o Apóstata, ao longo de duas partes, com cinco atos e miríades de personagens cada, o que significa que, se encenada na íntegra, não duraria menos que dez horas.

É compreensível, pois, que qualquer encenação dessa peça seja necessariamente uma amostra. No entanto, desconfio que esta montagem de Sérgio Ferrara esteja mais para opus incertum que para amostra, pois algumas falas que ouvi ontem no teatro do Sesc Santana não me soaram como Ibsen (ainda não terminei de ler a versão francesa da peça, com quase 400 páginas, que baixei da internet), mas antes pareceram pescadas do romance Juliano, de Gore Vidal.

Mesmo que tenham sido, o enxerto pouco ajudou. A encenação de Ferrara tem o único mérito de ser inédita no Brasil. Eu disse “único mérito”, não “mérito único”. A direção é ruim, a cenografia inexistente, os atores medíocres — à exceção do veterano Abraão Farc, que por dois minutos rouba a cena, como monge cego que amaldiçoa o imperador — e, como sempre, tentou-se compensar a total falta de idéia nos figurinos vestindo todo mundo de preto.

Oxalá o Porto Alegre em Cena deste ano me devolva o gosto de ver teatro no Brasil, já que haverá montagens do mundo todo; que me faça gostar de ver teatro brasileiro, isso seria pedir demais.

19.6.08

Cleópatra: o umbigo de Júlio Bressane

Não canso de me surpreender com a distância existente entre os cineastas brasileiros e o público que vai ao cinema. Aqueles, em sua maior parte, não produzem filmes para ser assistidos, mas para ganhar prêmios em festivais. Exemplo gritante é Cleópatra, de Júlio Bressane, que estreou em São Paulo há pouco, em dois cinemas somente, com apenas uma sessão cada. Antes disso, já tinha participado de vários festivais de cinema pelo mundo, e talvez sido premiado em alguns: quem é que fica sabendo? Agora, assisti-lo mesmo, quem é que assiste, se ele estréia em duas míseras salas na maior cidade do país?

Num primeiro momento, a revolta: os cineastas brasileiros são discriminados, veja-se o Indiana Jones estourando em mais de 50 salas só em São Paulo! Mas não é bem assim. Os cineastas brasileiros é que não estão muito interessados em espectadores. Seu interesse é filmar o próprio umbigo, com os governos estaduais e municipais a financiar tais exercícios de narcisismo. O próprio Bressane sabia que seu filme era inassistível ao fazê-lo, pois em algumas estréias chegou a pedir ao público que não se retirasse antes do término das duas infindáveis horas de projeção.

Alguns artigos atrás, neste mesmo blog, critiquei os diretores teatrais brasileiros de um modo que, acredito, se aplica aos cineastas brasileiros:

Por que os diretores não páram com seus experimentalismos, bons apenas para eles e para seus egos inflados, e não dão aos espectadores de teatro o que pertence aos espectadores de teatro?

Acredito que a raiz desse mal está na relutância em profissionalizar a arte cênica. Fazer um teatro dirigido ao público pagante, ou seja, um "teatro profissional", não é encarado como arte, e sim como comércio, ou prestação de serviço. Daí os diretores teatrais brasileiros insistirem no amadorismo, na experimentação, na encenação do próprio ego, o mais distante possível do texto para teatro. Afinal, se algum desses empirismos vazios e egocêntricos for bem-sucedido, o mérito recairá sobre o diretor, e não sobre algum grego morto há milênios.

Onde diz "teatro" e "grego morto há milênios", leia-se respectivamente "cinema" e "roteirista profissional".

.
A analogia com o teatro tem muito a ver com o filme de Bressane, inclusive porque sua Cleópatra funcionaria melhor num palco. Os cenários, figurinos e atuações ostentam o artificialismo que só perdoamos em espetáculos ao vivo. Não conheço outros filmes seus, mas ele não parece ser um cineasta que sabe aproveitar os inúmeros recursos da sétima arte. Todos os vícios do cinema nacional estão presentes neste Cleópatra: cenas interminavelmente longas, monótonas, mal editadas, sem trilha sonora, sem qualquer música de fundo as mais das vezes, som ruim, o áudio mal sincronizado com falas de atores em algumas cenas externas. Estes são mais que ruins (Miguel Falabella como Júlio César, por Júpiter!), e Alessandra Negrini no papel-título pouco tem a recomendá-la além da bundinha escultural. Todas as seqüências foram captadas com uma única câmera imóvel, de modo que são todas estáticas, além de intoleravelmente demoradas, como se o diretor quisesse tirar o máximo proveito dos quatro cenários (que seriam suficientes no teatro, mas num filme são indigência pura) e das peças de mobiliário copiadas (mal) de originais egípcios, como o pequeno trono de Tutancâmon.

Apesar dessas reproduções algo toscas, o filme não tem qualquer pretensão à historicidade; a Cleópatra de Bressane é puramente estética, e os nomes históricos de Alexandria, Atenas, Roma, funcionam como meros arquétipos. Por isso mesmo teriam sido benvindas inovações e transgressões no figurino e nos cenários, que parecem reles imitações baratas do filme estrelado por Elizabeth Taylor ou de montagens meia-boca da Paixão de Cristo.

Gostei da subjetividade dos diálogos, mas ela não consegue disfarçar inteiramente a pobreza das idéias expressas em frases como “contemple com seu olhar” ou “o mundo chama-se mundo porque é imundo”. Pensarão alguns que basta conjurar César, Cleópatra e Marco Antônio como personagens para que qualquer tolice posta na boca deles se transforme automaticamente em Shakespeare?

O filme pelo menos evita lugares-comuns, como o da serpente que teria dado morte à lendária rainha do Egito. Esta, ao invés, bebe de um veneno que ocultava no próprio umbigo. Duvido que Bressane tenha feito de propósito, mas metáfora nenhuma poderia ser mais oportuna para mostrar o que está envenenando o cinema nacional: a adoração dos cineastas ao próprio umbigo.