14.12.08

Napoleoniana II

Mais um livro mal traduzido sobre o Grande Homem. A vítima desta vez é o Napoleão de Thierry Lentz, coisinha de cento e poucas páginas da coleção francesa Que sais-je?, para estudantes primários. O algoz é uma tal Constancia Egrejas.

Já ao folhear o livro na livraria, deparei com a seguinte bobagem na última página: “a burguesia o sustentou tanto que suas guerras tiveram sucesso”. O original, que desconheço, decerto diz "contanto que suas guerras tivessem sucesso”, sendo fato notório que a burguesia abandonou o imperador da França quando este começou a perdê-las.


Egrejas também ignora que nomes de reis e príncipes (menos os contemporâneos, exceção feita a Balduíno da Bélgica) devem ser aportuguesados. As esposas de Napoleão foram imperatrizes, portanto são Josefina e Maria Luísa, não Joséphine e Marie-Louise (ou Maria Louisa, como esta arquiduquesa era chamada em sua Áustria natal). A enteada dele, Hortense, foi rainha da Holanda, portanto Hortência. Todos os irmãos dele foram reis e príncipes, de modo que Joseph é José, Lucien é Luciano, Pauline é Paulina, Jérôme é Jerônimo, etc. Essa tradutora desconhece ainda quem foi Puchkin (a tradução conserva "Pouchkine", como o dramaturgo russo é chamado pelos franceses), que o rio Rhône é o Ródano, entre outras omissões graves. A palavra règne é constantemente traduzida como "reino", não como "reinado", originando frases sem sentido como "O reino imperial tornou-se uma epopéia" (pág. 158).

A maioria das pessoas que prestam serviço de tradução são mulheres, pois é um trabalho que pode ser feito de casa. Existem excelentes tradutoras no Brasil, mas não de História. Eu sei bem, pois prestei serviço para o The History Channel durante anos, e nunca vi uma tradutora que tivesse conhecimento profundo ou mesmo interesse particular nos assuntos históricos que vertia para o português. Mulher odeia História. Não o ignorava o grande Machado ao observar no Dom Casmurro: “Respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos”. Era de se esperar, no entanto, que uma editora universitária fosse mais cuidadosa com suas traduções que um canal de TV a cabo.

Querem a prova de que isso é verdade e não machismo? Comparem duas biografias do Grande Homem lançadas pela Jorge Zahar Editor, ambas em 2005.

A primeira, Napoleão – Uma Biografia Política, de Steven Englund, não só tem o já mencionado problema de tradução de nomes, como também mostra uma caricatura de Napoleão bebê roubando a coroa de Luís XVIII enquanto este dorme, e embaixo a inscrição “Roubando a coroa do papa” (decerto o original dizia papa, “papai”). Quem traduziu? Maria Luiza X. de A. Borges.

A segunda é o formidável Napoleão – Uma Biografia Literária, de Alexandre Dumas, que não apresenta problema algum de tradução e, ao contrário, é um primor de correção histórico-lingüística em português. Quem traduziu? André Telles.

I rest my case, Your Honor.

A Globo não é mais a mesma; graças a Deus!

Muitos anos atrás a rede Globo brindava seu público com teleteatros, talvez para se redimir por seu fundador, Roberto Marinho, ter sido um dos maiores lacaios da Ditadura Militar que tanto perseguiu o teatro neste país. Anos depois, sem a Ditadura, mas com a imbecilidade do público bem arraigada graças ao retrocesso cultural imposto pela Ditadura, acabaram-se os teleteatros da Globo, suas novelas ficaram mais numerosas e ainda menos inteligentes, e estreou o Big Brother, sem dúvida o ponto mais baixo já atingido por qualquer mídia em qualquer sociedade ou época. A minissérie Capitu, cujo último dos seus cinco episódios foi exibido ontem, é uma felicíssima retomada dos teleteatros da década de 70, com recursos técnicos de hoje.

A idéia de traduzir as insinuações e entrelinhas de Machado de Assis usando recursos teatrais e alegorias burlescas não é nova — houve nos anos 80 uma tentativa patética de verter nesse formato o Memórias Póstumas de Brás Cubas —, mas nunca foi tão bem-sucedida quanto nesta versão de Dom Casmurro adaptada por Euclydes Marinho para a TV. A direção de Luiz Fernando Carvalho é nada menos que perfeita, o elenco é impecável e a fotografia de encher os olhos. As vinhetas mostrando pedaços de fotos e recortes de jornais antigos retrata maravilhosamente as recordações fragmentárias do memorialista Bentinho. Este recebe seu apelido num trem da Central, não num bonde, e o Otelo a que assiste não é o de Verdi, mas o de Orson Welles, anacronismos expressionistas que acentuam melhor que qualquer montagem naturalista, de época ou não, a universalidade e perenidade do tema. O genial Bruxo do Cosme Velho teria ficado orgulhoso.

Aliás, leio na Veja que o subgênero da telenovela anda perdendo audiência, coisa impensável anos atrás. Notícias como essa, aliadas a obras da qualidade de Capitu, tornam mais fulgurante a luz que desponta no fim do túnel.