28.12.07

Muita sombra e pouco Goya

O judeu tcheco Milos Forman passará à história do cinema hollywoodiano como diretor de apenas um grande filme: Amadeus, de 1984. Seus outros filmes são apenas razoáveis, e o último, Goya’s Ghosts – estupidamente traduzido aqui como Sombras de Goya, não como Fantasmas de Goya –, é, no máximo, interessante, e mesmo assim somente para aficionados por Goya e por História.

O problema principal do filme é o próprio Francisco Goya, pintor da corte espanhola. Ele não é o protagonista, ao contrário do que o título possa sugerir; não é sequer um personagem propriamente dito, e sim um mero espectador do que acontece à sua volta, bem como testemunha das transformações que sacudiram a Espanha na virada do século XVIII para o XIX, as quais ele registra em suas pinturas e gravuras. É uma pena para o impecável ator sueco Stellan Skarsgärd, que perdeu a chance de mais um bom desempenho.

De um modo geral, o período evocado pelo filme é demasiado rico em acontecimentos históricos para fazer jus a conflitos humanos individuais, por isso todos os personagens são emblemáticos. O exemplo mais evidente disso é o padre Lorenzo, interpretado por Javier Bardem, que começa como inqusidor-mor, ajudando a tornar a Inquisição ainda mais desumana do que já era. Quando as tropas de Napoleão invadem a Espanha e põem fim ao reinado de terror dos monges dominicanos, o padre renegado vira a casaca e se torna ministro do novo rei, José Bonaparte, irmão de Napoleão. A cena de que mais gostei foi o rei republicano separando quadros de Velásquez para enviá-los ao imperador em Paris, rejeitando, porém, os de Bosch, ou El Bosco, como os espanhóis o conhecem.

O filme abunda em símbolos e metáforas, já que um dos roteiristas é Jean-Claude Carrière, que trabalhou com Buñuel. Logo no início vemos, durante uma caçada do decadente Carlos IV da Espanha (avô de nosso dom Pedro I), dois abutres lutando pela carcaça de um cordeiro, alusão à Espanha disputada pelas rapinantes potências da época.

Particularmente desagradável e excessivo é o massacre sem trégua, durante o filme inteiro, da jovem, inocente e bela Inês, personagem interpretada pela apetecível Natalie Portman. Presa e torturada pela Inquisição por não gostar de porco – o que para a jurisprudência viciada desse tribunal eclesiástico constituía prova de prática de rituais judaicos – a pobre moça é ainda abusada pelo infame Lorenzo numa sórdida enxovia, onde é deixada apodrecendo por quinze anos. Quando todos os prisioneiros da Inquisição são libertados pelos franceses, Inês, reduzida a um trapo humano, sai da masmorra apenas para descobrir que as mesmas tropas que lhe deram liberdade mataram toda a sua família, e para ser aprisionada de novo, desta vez num hospício, pelo mesmo Lorenzo – agora mais republicano que Robespierre –, sem jamais reencontrar a filha cujo pai era o ex-padre. E o pior de tudo é que a infeliz continua apaixonada até o fim pelo miserável que a destruiu. Inês lembra um pouco Ana, de Ana e os Lobos, estuprada e assassinada por três homens que representam os poderes opressores da Espanha de Franco. Inês – cujo nome em latim quer dizer “cordeiro” – é a Espanha, eternamente apaixonada por seus opressores.

Mais uma metáfora: Goya fica surdo a partir da segunda metade do filme, quando o país luta para se livrar dos invasores franceses. Se a mulher espanhola ama quem a “fode”, o homem espanhol não escuta à voz da razão.

Curioso também que, quando os ingleses expulsam os franceses da Espanha – e a filha de Inês, Alicia, que havia se tornado prostituta, acaba como a nova amante de Wellington – é restaurada não só a decadente monarquia espanhola, na pessoa do incompetente Fernando VII, mas também a execrável Inquisição. Ora, foram justamente os historiadores ingleses, desde os conflitos entre Inglaterra e Espanha no século XVII, que pintaram a Inquisição espanhola com as tintas diabólicas que até hoje não se desbotaram. Pois antes de se tornar mero instrumento de terror e poder, esse tribunal chegou a servir à Justiça, cujo conceito era bem diferente do que conhecemos hoje.

Se Fantasmas de Goya funciona melhor como História que como Cinema, é preciso observar que o drama de Inês é historicamente improvável. A perseguição da Inquisição aos marranos ricos – e Inês, no filme, é de família rica – tinha propósitos pecuniários bem como teológicos. Quando um infeliz era acusado de heresia e, sob tortura, confessava sê-lo, o interrogatório da Inquisição procurava fazer com que toda a família fosse implicada também, pois os bens dos “hereges” eram confiscados pelo sinistro tribunal. Ora, isso não acontece no filme, embora Bilbatúa, o pai de Inês, fosse rico e descendente de judeus; ele seria, na verdade, uma presa muito mais atraente para a cobiça inquisitorial do que a sua filha.

Condenada juntamente com o pai e o noivo, Branca Dias, da ótima peça de Dias Gomes O Santo Inquérito, é uma vítima da Inquisição muito mais plausível e convincente do que a Inês interpretada pela judia Portman e dirigida pelo filho de vítimas de Auschwitz Forman. Dominada pelo lobby judaico, Hollywood tem mania de exagerar nos paralelos entre a Inquisição e o Holocausto, coisas completamente diferentes.

19.12.07

Entender para quê?

Devo muito a Luiz Carlos Lisboa, que em seu Pequeno Guia da Literatura Universal indicou os livros que nenhum leitor esclarecido pode ignorar impunemente. Graças a ele conheci H. P. Lovecraft, um dos precursores do realismo fantástico, e também José J. Veiga, representante brasileiro maior do realismo mágico, com seu kafkiano Sombras de Reis Barbudos, que terminei de ler ontem.

Nunca me aconteceu antes permanecer momentos a fio sob efeito de um livro recém-lido, imerso numa espécie de estado de graça intelectual. Sombras de Reis Barbudos é dessas obras que têm uma comunicação direta com o inconsciente. O consciente não capta o significado de todas as alegorias e símbolos que permeiam a narrativa enxuta e fluída, e nem precisa. Os acontecimentos descritos, bastante prosaicos em si, estão impregnados por uma realidade subjacente que parece uma sombra distorcida das coisas comuns que enxergamos.

Considerado o melhor romance de 1972, esse livro onírico, publicado no auge da Ditadura Militar, fala de uma cidadezinha rural dominada por uma misteriosa Companhia, que cercou o povoado de muros imensos e se dedica a impor esdrúxulas proibições e punições aos cidadãos atônitos. Quando miríades de urubus adejam o povoado e todos adquirem lunetas para vê-los, estas são proibidas, e posteriormente obsoletas, pois os urubus desceram e se tornaram bichos de estimação dos aldeões; quando pessoas aparecem voando, a Companhia prontamente proíbe que se erga os olhos ao céu para contemplá-las. A fim de evitar o risco de as pessoas sofrerem as conseqüências por se distraírem e acabar levantando a cabeça, Lucas, o garoto narrador, explica o que foi feito:

Contra esse perigo alguém inventou esse aparelho que vai intrigar muita gente amanhã, quando ele for encontrado em nossos porões ou desenterrado de monturos por aí. Como é que nossos netos ou bisnetos vão saber para que serviam esses blocos de madeira formados de duas partes unidas por dobradiça de um lado e fechadas com trinco de outro, tendo no meio um buraco da grossura de um pescoço, e numa das metades um espeto com a ponta inclinada para o centro? Será que alguém vai descobrir que isso é um aparelho que usávamos em volta do pescoço quando saíamos à rua, e que o espeto servia para cutucar a nuca quando a pessoa se distraía e erguia um pouco a cabeça?

Os “reis barbudos” são, naturalmente, os donos do poder, sua sombra é a opressão com que cobrem o povo; os urubus, as pessoas que voam, as chuvas ininterruptas, a queda de Tio Baltazar, fundador da Companhia e depois sua vítima, tudo isso se presta a exercícios de decifração, embora o livro não exija ser entendido, mas tão-somente sonhado.

13.12.07

Nietzsche justificando Dan Brown e Zíbia Gasparetto

Necessidade de maus escritores. — Sempre deverão existir maus escritores, pois eles atendem ao gosto das faixas de idade não desenvolvidas, imaturas; estas têm suas necessidades, tanto como as maduras. Se a vida humana fosse mais longa, o número de indivíduos amadurecidos seria maior ou, no mínimo, tão grande quanto o de imaturos; ocorre que a imensa maioria morre cedo demais, isto é, há sempre bem mais intelectos não desenvolvidos e com mau gosto. Além disso eles desejam, com a enorme veemência da juventude, a satisfação daquilo de que necessitam, e forçam o surgimento de maus escritores.



Fonte: Humano, Demasiado Humano

Reality show com glamour

Para a maioria dos marmanjos, um programa tão feminino como Brazil's Next Top Model é uma mera desculpa para ver mulheres bonitas. Não nego ser um deles, sobretudo porque abomino reality shows. Esse, no entanto, tem um propósito específico e bastante pragmático, ao contrário dos Big Brothers da vida: introduzir uma nova supermodelo brasileira no competitivo e anoréxico mercado internacional da moda.

Não assisti ao programa original norte-americano, do qual este é a versão brasileira. Quem viu, disse que o de lá conta com muito mais recursos: grande novidade. Só sei que o daqui, a despeito da simplicidade local, parece feito com doses razoáveis de profissionalismo e bom gosto. Ele é informativo na medida em que deixa claro não se tratar de um concurso de beleza, e a transformação física das jovens concorrentes ao longo dos episódios salta aos olhos. A modelo Fernanda Motta é uma apresentadora competente, e a consultora de moda Érica Palomino faz um papel parecido ao do jurado de programa de auditório que sempre desanca o calouro.

O pior do programa são as intervenções estilo reality show, a saber, supostas brigas, picuinhas e desabafos das jovens, flagradas por câmeras indiscretas nos dormitórios da casa onde elas vivem confinadas durante a competição, como se esta só tivesse graça se temperada por cenas de alcova. Também incomoda um pouco constatar quão impiedoso, quão nocivo o mercado da moda pode ser ao vermos moças lindas, esbeltas e saudáveis chamadas de "gordas" por não serem esqueléticas, ou de "feias" por não serem fotogênicas, ou mesmo de "velhas" por terem mais de dezenove anos.