25.3.08

Por que "Robin e Marian"?

Não é o filme favorito de ninguém, só meu. Afinal, está longe, muito longe, do Robin Hood de Errol Flyn, que mais parece o Peter Pan. Este filme de 1976, dirigido por Richard Lester, deveria chamar-se A Morte de Robin Hood, por se tratar da desconstrução, conquanto lírica, do mito. O mito do nobre que foi viver na floresta de Sherwood com seu alegre bando de foras-da-lei e sua mulher, Lady Marian, de onde, roubando dos ricos para dar aos pobres, combatia o maligno e arbitrário xerife de Nottingham, bem como ao desumano príncipe João-sem-Terra, regente da Inglaterra enquanto seu irmão, o galante e heróico rei Ricardo Coração de Leão, combatia na Terra Santa como Cavaleiro de Cristo. Com a volta do rei, tudo se normalizava, a justiça prevalecia, até que Robin Hood, envenenado por uma cruel freira, disparava do alto da abadia de Kirkley uma flecha, pedindo ao fiel amigo e escudeiro, João Pequeno, assim chamado por ser um gigante, que o enterrasse no local por ela atingido.

O Robin Hood de Sean Connery (que então surpreendeu ao mostrar-se bom ator) nada é além de um camponês bronco e tolo. Pior: está velho, isto é, com mais de quarenta anos, numa Idade Média em que a expectativa de vida para os homens beirava três décadas. Vinte anos depois de partir ele está, como um Chabert inglês, retornando das Cruzadas, cansado e desiludido com as matanças que ajudou a promover. Seu rei-cruzado Ricardo não passa dum açougueiro; quando o filme começa, este está sitiando um castelo cheio de mulheres e crianças que supostamente sonegam-lhe uma estátua de ouro. Robin recusa-se a chaciná-las; Ricardo manda prendê-lo e as chacina pessoalmente, para logo perceber, sem remorso, que seu tesouro era uma pedra. Um velho caolho na amurada atira-lhe, sem arco, uma flecha, e para sua própria surpresa, atinge o rei no pescoço. Foi o único a escapar do massacre. “Gostei do olho dele”, Ricardo justifica-se, antes de morrer, praguejando, por causa do ferimento. “Que será de você, alegre Robin”, diz, libertando seu prisioneiro, “agora que morri?”

João Pequeno, que no filme tem a mesma altura de Robin, pergunta para onde irão. “Para casa, John.” Na Inglaterra, os velhos companheiros de Robin, o menestrel Will Scarlet e o Frei Tuck, não estão em situação melhor. Com o embargo do odioso João-sem-Terra (que agora a tinha toda) ao Papado, eles sobrevivem roubando cavalos dos que se confessam com o frade. Robin surpreende-se ao saber que seus feitos heróicos percorrem o reino em forma de baladas. “Mas eu não fiz nada disso!” “Nós sabemos que não”, sorri Will Scarlet, dedilhando seu alaúde.

Mas a maior surpresa desse Odisseu medieval está por vir: sua Penélope casou-se... com Cristo. Madura e linda, Audrey Hepburn é Marian, abadessa de Kirkley, e está prestes a entregar-se prisioneira ao governo anticlerical. Robin insiste em salvá-la, ela não quer. Ele bate nela e a carrega como um fardo, em seu cavalo. Mais tarde ela diz que um dente seu ficou solto. Robin é um tolo, mas não a ponto de ignorá-lo. “Nunca quis magoar você, mas é só o que faço.” Como se recordasse de algo, ela o encara. “Você nunca escreveu.” E ele, algo atônito: “Eu não sei escrever”...

Robin gostou de bancar o herói. Vai salvar agora as outras freiras, gordas, aprisionadas em Nottingham. Ele e João roubam uma carroça e se disfarçam de mercadores. Ao xerife bastou olhar a carroça que se aproxima para saber que é seu patético oponente. “Dois cavalos puxando, e dois para empurrar? Quase lamento.” E quando um sentinela imbecil se dá o imenso trabalho de desatar o nó para fazer cair o portão e capturar Robin na óbvia armadilha, o enfastiado xerife diz: “Cut it, for Christ’ sake!” O modo como Robin e João escapam é o menos heróico possível. Eles são lentos, os guardas do xerife incompetentes. Muito sangue para pouca luta. O maravilhoso Robert Shaw é o xerife, homem cultivado, religioso, cavalheiresco. “Dois homens velhos, meu bom Deus!...”

Com algumas cicatrizes a mais, Robin volta a se interessar por Marian. “Nunca beijei uma freira; será pecado?” Continua tão bela, que não beijá-la é que seria. Mas ela tem suas próprias cicatrizes: os pulsos que cortou há vinte anos, antes de contrair os votos. “Rezei tanto, fiz penitências terríveis, mas só o tempo... eu não sonho mais com você, Robin.” E em seguida, com característica coerência feminina: “Houve muitas mulheres nas Cruzadas?” “Várias, sim... mas todas se pareciam com você.” Ela por fim se deixa abraçar. “Tenho me sentido tão pouco por tanto tempo...” Então, à beira do rio, iluminada pela deslumbrante fotografia de David Watkins, ela suplica: “Machuque-me... Faça-me chorar!” Eles se deitam em um trigal, desaparecendo no mar dourado, o ocaso de duas lendas.

Camponeses, iludidos pelas canções heróicas, procuram Robin para que ele os lidere contra o honesto, porém feudal, xerife. Robin também se ilude; talvez ele seja mais, afinal, do que um velho reumático. O interessante é que, no filme todo, ele mal dispara uma seta... O bandoleiro e o xerife concordam em travar um combate singular; rezam primeiro, lado a lado, usando as espadas como crucifixos. O respeito, quase afeto, de um pelo outro, é surpreendente. O xerife ordena aos seus homens que deixem os camponeses em paz, caso perca. No combate, revela-se melhor combatente, porém fisicamente mais débil que o brutamontes Connery. Ele fere Robin mortalmente, mas é morto por este. João e Marian levam Robin à abadia, enquanto os homens do xerife, indiferentes às ordens do seu finado comandante, massacram e aprisionam o efêmero bando de Sherwood.

Delirante, Robin festeja sua inútil vitória. “Você cuidará de mim até eu sarar”, diz a Marian, “e então... grandes batalhas! Nossa vida será tema de baladas!” Ela lhe dá uma beberagem, não sem antes beber um bom gole. Ele aprova o remédio, pois não sente dor. Nem dor, nem seus membros. “João! Socorro, fui envenenado!” Por um momento ela parece a própria morte, branca, alta, definhando. Desesperado, ele pergunta: “Por quê?!” A voz da freira soa como o vento entre os trigais: “Amo você... mais que à luz do Sol... mais que ao corpo, à alegria, ou mais um dia... mais que a Deus.” Não foi bem uma resposta. Teria sido para salvar-lhe a alma, para que não sofresse, para quê? Pouco importa. Robin se resigna. “Nós não teríamos mesmo outro dia assim, teríamos?” Mesmo em sua obtusidade camponesa, sabe que se algo nele vale a pena manter vivo, é a lenda. Por isso, quando João Pequeno, chorando como uma criança, o abraça, ele tira uma flecha da sua aljava e ajusta-a, trêmulo, ao famoso arco. “Onde cair, coloque-nos juntos... e deixe-nos lá...”

A seta dispara janela afora, e se perde no céu infinito, ao som da música de John Barry. Close em duas maçãs podres sobre o parapeito.