29.1.12

Sublime anonimato

A discussão sobre quem escreveu as peças teatrais e poemas atribuídos a William Shakespeare começou logo após a morte deste e já dura 400 anos. Numerosas, ainda que circunstanciais, as evidências contra a autoria do ator inglês vão da inexistência de manuscritos seus ao fato de ele não ser letrado o bastante para gerar tão erudita obra. Candidatos à identidade posta em dúvida variam do filósofo Francis Bacon ao dramaturgo Christopher “Kit” Marlowe.


Não é difícil imaginar o escândalo que tais teorias provocam no empoeirado establishment acadêmico, na rentável indústria do turismo em Stratford-upon-Avon, cidade natal de Shakespeare, ou simplesmente nos acostumados ao ícone semicalvo de enorme colarinho. Os ingleses, de um modo geral, não se incomodam que o autor verdadeiro seja outro John Bull; inadmissível seria que não fosse inglês.



A mim essa polêmica interessa apenas como arte, e em tal capacidade Anônimo, o primeiro filme a botar a colher na briga, é arte da boa. Com a fortuna que ganhou fazendo cinema catástrofe para Hollywood, o diretor alemão Roland Emmerich nos deu em Anônimo a sua melhor película. Nela, os recursos técnicos usados para explodir a Casa Branca, congelar Nova Iorque, ressuscitar Godzila e destruir o mundo, serviram para reconstituir a Londres elisabetana com toda beleza e fidelidade possíveis. Embora financiado por dólares, o filme traz apenas britânicos no elenco, garantindo a impecabilidade da pronúncia e da interpretação.



Anônimo advoga a famosa tese de que Edward de Vere, conde de Oxford, escreveu os mais soberbos monumentos da literatura inglesa, encenando-os no anonimato porque não ficava bem um nobre se dedicar a atividades tão vis como teatro. Will Shakespeare, em contrapartida, é um rufião iletrado que não só se faz passar por autor dessas obras-primas, como ainda extorque dinheiro do conde em troca de não lhe revelar o segredo. Afinal, o patético Polônio, apunhalado em Hamlet, não passa de uma caricatura do puritano William Cecil, conselheiro da rainha, o que poderia custar a de Vere uma temporada na sinistra Torre de Londres. Mercenário, Will chega a assassinar Kit Marlowe, que estava prestes a descobrir a verdade sobre a impostura. O artista puro e incorruptível encontra sua voz no teatrólogo Ben Johnson, autor de Volpone, que inicia o filme arriscando a vida para proteger os originais da obra de de Vere das garras do arquivilão corcunda Robert Cecil, filho de William e inspirador do grotesco personagem Ricardo III.




Anônimo trata a monarquia britânica com a irreverência que ela merece e que nenhum cineasta inglês parece ter, a julgar pelas recentes baboseiras patrióticas A rainha e O discurso do rei. Creio ser esse o filme que mais justiça fez à algo enigmática Elisabete I, a Rainha Virgem (“ela é tão virgem quanto eu sou católico”, comentou o huguenote Henrique IV). Bem distante da heroína celibatária das estúpidas hagiografias protagonizadas por Cate Blanchett, e da onisciente deus ex machina de Judi Dench em Shakespeare apaixonado, a Elisabete de Emmerich — regiamente interpretada por Vanessa Redgrave na velhice, e na juventude pela filha de Vanessa, Joely Richardson — é uma mulher de carne e osso, amante da vida, do teatro e dos amantes que o seu poder atrai, embora não tanto dos bastardos que tem com eles.






Curiosamente, embora reduza Shakespeare a um impostor, chantagista e homicida, o filme é um hino de amor ao teatro shakespeariano, assim como o romance Borges gibt es nicht, de Gerhard Köpf (outro alemão), é uma das maiores homenagens já prestadas ao genial Jorge Luis Borges, apesar de este ser, no livro, um reles ator a serviço do argentino Bioy Casares, verdadeiro criador da obra inigualável que o mundo inteiro atribui a Borges.




A despeito das declarações bombásticas do cineasta sobre o Cisne de Avon ser uma fraude, e cujo objetivo não é outro senão vender o seu peixe, a mensagem sutil de Anônimo é o postulado de Oscar Wilde: “revelar a arte e ocultar o artista é o objetivo da arte”. Ou seja, não importa quem criou a obra shakespeariana (que inclusive pode ter mais de um autor, como a de Homero); o que importa é conhecê-la. Somos muito personalistas, e o personalismo é nefasto, pois origina aberrações como religiões, cultos a políticos populistas, partidarismos e sectarismos. A própria Bíblia, embora escrita por dezenas de autores desconhecidos, foi o best-seller do Ocidente durante séculos só porque o atribuíram a um único autor: Deus.




É inevitável comparar essa fita com a outra que mais explorou a persona do dramaturgo inglês. Filme leve para ser assistido com a família — e por essa razão, mais que por suas qualidades, premiado com sete Oscars —, Shakespeare apaixonado, de John Madden, seria como uma das próprias comédias shakespearianas, ao passo que Anônimo equivaleria a uma das tragédias, nas quais o Bardo atingiu a maturidade poética. Uma coincidência irônica é que Kit Marlowe, no filme de Madden, também acaba morto por Will, embora por acidente, ou ao menos é o que este pensa.




No prólogo de Anônimo, o grande ator Derek Jacobi — que fez o mesmo papel de coro no excelente Henrique V de Kenneth Branagh — oferece ao espectador uma história diferente, “mais sombria” que a tradicional, “sobre um palco conquistado e um trono perdido”. Esse trono perdido é a surpresa final do filme.



Anônimo não ganhará tantos Oscars quanto Shakespeare apaixonado, porque uma comediazinha romântica terá sempre mais audiência que o mais sublime drama. Quer se goste do filme de Emmerich ou não, ele tem o mérito inegável, já na sua concepção, de despertar curiosidade sobre as peças e poemas que menciona — Hamlet, Henrique V, Sonho de uma noite de verão, Como gostais, Macbeth, Ricardo III, Vênis e Adônis, etc. — nas pessoas que não os conhecem, lançando talvez a semente para uma nova geração de admiradores da obra shakespeariana (ou “deveriana”). Da obra, e não do homem, quem quer que este tenha sido.