21.3.16

O republicano coroado

De passagem pelo Rio de Janeiro em 1909, o célebre escritor francês Anatole France, surpreendido com os múltiplos louvores à memória de Pedro II, perguntou: “Mas se o monarca de vocês era assim, por que razão o destronaram?” A razão foi uma só: para impedir a democratização do Estado e da sociedade brasileira.

D. Pedro II, o monarca mais culto de sua época, governou o Brasil com sabedoria, firmeza e paciência por quase meio século de reinado, ao cabo do qual deixava um legado invejável: unidade territorial consolidada, escravidão abolida, sistema eleitoral efetivo, judiciário independente, imprensa livre e corrupção governamental quase nula.

Só uma coisa não fez d. Pedro, segundo Mendes Fradique: a barba.

Alguns creem que as conquistas do Segundo Reinado se deveram mais às qualidades pessoais de Pedro que à eficácia do regime monárquico. Seja como for, o Exército, após a Guerra do Paraguai, e a oligarquia cafeeira, após a Abolição da Escravatura, voltaram-se contra o imperador, cuja imagem era desgastada sem trégua pela propaganda dos ativistas republicanos.

Parte desse desgaste se devia precisamente à condição republicana do monarca. O próprio d. Pedro não acreditava na monarquia; como escreveu em seu diário, preferiria ser um presidente da República, embora não imaginasse a república que o Brasil viria a se tornar. Sua corte era considerada triste, como ele mesmo, e cortes são pontos de encontro entre reis e sua base de sustentação, a nobreza.

A outra parte se devia à impopularidade do conde d’Eu, marido da princesa Isabel, e à condição física do monarca. Precocemente envelhecido para seus 64 anos, d. Pedro declinava a olhos vistos, assim como o regime. Sua saúde, sempre precária, tornara-se periclitante. A 13 de maio de 1888, na França, chegou a receber extrema-unção, tão improvável parecia o seu restabelecimento. Mas este ocorreu, e o imperador, de volta ao Brasil, tentou reformar o regime e viabilizar o Terceiro Reinado sob bases sociais mais amplas.

Para isso, recorreu aos políticos liberais, que defendiam, entre outras coisas, a ampliação do colégio eleitoral, o voto secreto, a proporcionalidade entre o número de deputados e a representação provincial parlamentar, casamento civil, extinção da vitaliciedade dos senadores, etc. O imperador convidou para chefiar seu novo ministério o abolicionista Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, que aceitou o desafio de realizar as propostas liberais.

Ao apresentar o programa à Câmara, o novo primeiro-ministro foi atacado pelos conservadores, que deram vivas à República. O deputado pernambucano Joaquim Nabuco lembrou que “o grosso das forças republicanas vem do descontentamento causado pela Abolição”. Quando um deputado conservador apresentou moção de desconfiança ao gabinete, esta foi aprovada por setenta e nove votos a vinte. Dom Pedro então dissolveu o Congresso — medida totalmente legal que lhe facultava o Poder Moderador, diferente de fechar o Congresso — e convocou novas eleições. Em agosto, os liberais obtiveram esmagadora vitória, elegendo 120 deputados contra sete conservadores e apenas dois republicanos. A certeza de que as reformas seriam aprovadas precipitou a debandada dos conservadores para as hostes republicanas, sobretudo após a última Fala do Trono, em que d. Pedro mencionou um projeto de reforma agrária que provocou calafrios nos latifundiários:

Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertida em lei, como julgar vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade territorial e facilitar a aquisição e cultura das terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis sobre a conveniência de conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais.

É de surpreender que d. Pedro II tenha sido deposto?

Não contente com isso, o Governo Provisório exilou toda a família imperial. Nunca, nos cinquenta anos do Segundo Reinado, um só brasileiro fora banido.


Extraído do meu livro Guia politicamente incorreto dos presidentes da República, Editora LeYa, 2016.