19.12.07

Entender para quê?

Devo muito a Luiz Carlos Lisboa, que em seu Pequeno Guia da Literatura Universal indicou os livros que nenhum leitor esclarecido pode ignorar impunemente. Graças a ele conheci H. P. Lovecraft, um dos precursores do realismo fantástico, e também José J. Veiga, representante brasileiro maior do realismo mágico, com seu kafkiano Sombras de Reis Barbudos, que terminei de ler ontem.

Nunca me aconteceu antes permanecer momentos a fio sob efeito de um livro recém-lido, imerso numa espécie de estado de graça intelectual. Sombras de Reis Barbudos é dessas obras que têm uma comunicação direta com o inconsciente. O consciente não capta o significado de todas as alegorias e símbolos que permeiam a narrativa enxuta e fluída, e nem precisa. Os acontecimentos descritos, bastante prosaicos em si, estão impregnados por uma realidade subjacente que parece uma sombra distorcida das coisas comuns que enxergamos.

Considerado o melhor romance de 1972, esse livro onírico, publicado no auge da Ditadura Militar, fala de uma cidadezinha rural dominada por uma misteriosa Companhia, que cercou o povoado de muros imensos e se dedica a impor esdrúxulas proibições e punições aos cidadãos atônitos. Quando miríades de urubus adejam o povoado e todos adquirem lunetas para vê-los, estas são proibidas, e posteriormente obsoletas, pois os urubus desceram e se tornaram bichos de estimação dos aldeões; quando pessoas aparecem voando, a Companhia prontamente proíbe que se erga os olhos ao céu para contemplá-las. A fim de evitar o risco de as pessoas sofrerem as conseqüências por se distraírem e acabar levantando a cabeça, Lucas, o garoto narrador, explica o que foi feito:

Contra esse perigo alguém inventou esse aparelho que vai intrigar muita gente amanhã, quando ele for encontrado em nossos porões ou desenterrado de monturos por aí. Como é que nossos netos ou bisnetos vão saber para que serviam esses blocos de madeira formados de duas partes unidas por dobradiça de um lado e fechadas com trinco de outro, tendo no meio um buraco da grossura de um pescoço, e numa das metades um espeto com a ponta inclinada para o centro? Será que alguém vai descobrir que isso é um aparelho que usávamos em volta do pescoço quando saíamos à rua, e que o espeto servia para cutucar a nuca quando a pessoa se distraía e erguia um pouco a cabeça?

Os “reis barbudos” são, naturalmente, os donos do poder, sua sombra é a opressão com que cobrem o povo; os urubus, as pessoas que voam, as chuvas ininterruptas, a queda de Tio Baltazar, fundador da Companhia e depois sua vítima, tudo isso se presta a exercícios de decifração, embora o livro não exija ser entendido, mas tão-somente sonhado.