26.8.08

Napoleoniana

Não acreditei nos meus olhos ao folhear Os Crimes de Napoleão. O autor do factóide, um tal Claude Ribbe, pretende que um dos maiores estadistas da História usou câmaras de gás para eliminar seus oponentes, prefigurando Hitler. “Será por falta de hospícios que lunáticos andam soltos por aí publicando livros?”, pensei.

A lembrança de que eu conhecia o nome desse potoqueiro restituiu-me a fé na minha visão. Minha namorada me presenteou, anos atrás, com uma biografia do general Dumas, cujo autor, que não é outro senão o tal Ribbe, afirma que esse oficial, negro, foi terrivelmente discriminado e injustiçado por Napoleão. Nada mais absurdo, tendo seu filho Alexandre, pai dos Três Mosqueteiros e grande admirador do seu, nutrido veneração incondicional pelo imperador, ao qual enalteceu numa peça em seis atos, de 1831. Esse Ribbe, portanto, não passa de um recauchutado propagador da lenda negra de Napoleão como Ogro da Córsega, criada pelos feudalistas do século XVIII e mantida acesa até hoje pelos medíocres de todas as denominações.

(O tradutor dos supostos Crimes é um tal S. Duarte, que, coincidência ou não, traduziu outro panfleto antinapoleônico de autoria do jingoísta inglês Paul Johnson. Em ambos a esposa de Bonaparte é transcrita como “Joséphine”, não como “Josefina”, sinal claro de que o tradutor é tão ruim quanto os livros que traduz.)

Também absurdo, embora divertido e incomparavelmente mais bem escrito, é o outro lado da moeda, El alma de Napoleón, tradução espanhola do panegírico de Léon Bloy, para quem o imperador era “a face de Deus nas trevas”, o grande precursor do Cristo guerreiro descrito no Apocalipse. Segundo Bloy, diz o Espírito Santo:

Vuestro Emperador ha hecho lo que tenía que hacer, muy exactamente, como los soles o los animales, sin comprender ni saber, y la magnificencia que apareció en él antes de que cayese no era, con anticipación, sino un reflejo infinitamente pálido de mi propio esplendor.

Esses dois extremos, a lenda áurea e a lenda negra do grande Corso, são magistralmente depurados em Napoleão Bonaparte – Imaginário e Política em Portugal (c. 1808-1810), um dos melhores livros sobre o imperador, e de longe o melhor já escrito por brasileiro, no caso uma professora da UERJ de nome extenso como um subtítulo, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves.

Lenda dourada ou lenda negra, a exaltação ou o repúdio alimentam-se de fatos resultantes da mesma trama. Tanto pelo Ogro quanto pelo de Napoleão, o Grande, vislumbra-se um perfil que aponta para uma origem nebulosa, uma rápida ascensão ao poder, uma sede de dominação, uma vontade férrea e um declínio fulminante. Por conseguinte, os mesmos elementos combinados forjaram tanto a imagem do herói, como a do anti-herói.


Para os portugueses, invadidos por ele em 1808, Napoleão era, além do anticristo, “parido por mãe que a cão e gato ofertava d’amor venal tributo”,

Um homem com cabeça de donato
Tendo por barretina uma caneca,
Os olhos gázeos, boca de alforreca,
O pescoço estendido como gato.

Outros lusitanos, no entanto, como o poeta romântico Francisco Joaquim Bingre, entreviam o herói conquistador no lugar do tirano invasor.

Na Córsega nasceu o bravo Marte
O astro de Paris de França a glória,
O grande Napoleão de alta memória
O sem-pavor soldado Bonaparte
As águias de seu ínclito estandarte
Fez voar sobre as asas da vitória
Sua fama nas páginas da História
Não morreu, inda vive em toda a parte.