1.9.09

Proto-Hamlet

O esplêndido romance Gertrudes e Cláudio, de John Updike, publicado em 2000 nos EUA e em 2001 no Brasil, pretende reconstruir os acontecimentos que antecederam a tragédia shakespeariana Hamlet, a saber: o triângulo amoroso formado pelo rei da Dinamarca, sua esposa Gertrudes e seu irmão Cláudio, que por meio de fratricídio usurpa a coroa e desposa a cunhada viúva. Esses personagens são, respectivamente, pai, mãe e tio do príncipe Hamlet, que dá nome à mais célebre tragédia do Ocidente ao lado de Édipo Rei.

Gertrudes e Cláudio é divido em três partes, e cada uma delas se inicia com a mesma frase: “O rei estava encolerizado”. Na primeira parte, o rei em questão é Rorik, pai de Gertrudes, na segunda trata-se de Horvendile, marido de Gertrudes, na terceira é Cláudio, segundo marido de Gertrudes. A narrativa começa quando a princesa adolescente é instada pelo pai a se casar com Horvendile, guerreiro sanguinário e irritantemente cheio de si, tornando-o o próximo rei da Jutlândia ou Dinamarca, e termina quando o filho dela, Hamlet, que interrompeu seus estudos em Wittemberg para comparecer às segundas núpcias da mãe, aceita ficar em Elsinore. Ou seja, o romance tem fim ao ter início a peça.

 

Apesar disso, John Updike procura não macaquear o Bardo, a começar pelo ritmo, bem diferente ao da peça. A ação se desenrola morosamente, com calma e precisão, tal como o amor outoniço dos protagonistas, numa prosa belíssima, notavelmente bem traduzida para o português por Paulo Henrique Britto, e prenhe de elementos e descrições, por vezes excessivos, que remetem à Escandinávia medieval. Para dar maior veracidade à sua narrativa, o autor procurou situá-la num contexto histórico muito bem definido, tal como Shakespeare o fez, embora as sucessivas montagens e versões cinematográficas (como a da foto, dirigida por Kenneth Branagh) o tenham subvertido. Outro artifício interessante para obter essa veracidade foi que em cada uma das três partes os mesmos personagens são chamados por nomes diferentes, segundo as versões da lenda de Hamlet fornecidas por Saxo Grammaticus, François de Belleforest, e Shakespeare. Destarte, a heroína é Gerutha e Geruthe antes de ser Gertrudes, o herói é Feng e Fengon antes de tomar o nome latino Cláudio ao assumir a coroa, Horwendil é Horvendile e depois Hamlet, seu filho Amleth torna-se Hamblet e então Hamlet, e Corambis passa a ser Polônio.

Sendo a ótica não mais a de Hamlet, com a qual nos acostumamos, mas a de sua mãe e do seu padrasto, o amor adúltero deles é tão puro quanto isso possa não soar contraditório. Estamos, afinal, na Idade Média, em que o amor cortês consagrou, através de poemas e trovas, os amores ilícitos de Lancelote e Ginevra, Tristão e Isolda, sendo o adultério visto como uma reação do sentimento ao casamento de conveniência, da natureza contra a ordem social. Difícil não sentir ternura por esse casal maduro. “Já passamos da idade da beleza, dizem os jovens, mas nossos sentidos nos afirmam o contrário.” Cláudio comete assassinato, mas não é um assassino, assim como Gertrudes comete adultério sem ser uma adúltera. “A incursão dela pelo desafio e protesto do adultério fora, tal como os anos que ele passara vagamundeando pelas terras meridionais, um desvio, uma exploração de sua própria natureza que, uma vez realizada, não precisaria ser retomada jamais.”

A cilada do maniqueísmo, não obstante, também é evitada por Updike. Embora Horvendile seja frio — e todo marido frio mereça ser corno —, ele é também um rei exemplar, muito cristão e inteligente, e um esposo responsável, inda que tedioso e insensível. Ele representa a nova ordem trazida pelas guerras e consolidada pela Igreja; Gertrudes encarna a Escandinávia semi-pagã, e Cláudio, homem viajado e embebido das tradições meridionais da Europa, representa o amor cortês, ao qual ela sucumbe, pois “não estava acostumada a lidar com homens com quem ela pudesse conversar e que estivessem dispostos a ouvi-la”.

Horvendile tanto não é tolo, que descobre com certa facilidade que seu irmão e sua esposa, de meia-idade ambos, começaram a traí-lo. Confronta o irmão, acusa-o e promete acabar com ambos, e com o velho Polônio, que alcovitou os amantes. Este, que já tem o hábito de escutar por detrás de tapeçarias — o qual custar-lhe-á a vida mais tarde —, dá a Cláudio os conselhos necessários para que os salve a todos. O rei, segundo ele, “não verá necessidade de tomar decisões apressadas em relação a nós e à rainha, tamanha sua confiança na solidez de seu poder”. Isso dá tempo a Cláudio de eliminar o irmão adormecido, deitando-lhe veneno ouvido adentro, semeadura da qual brota, por assim dizer, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, que terá início com o fantasma do monarca assassinado exortando o filho à vingança, aparição aliás prefigurada no livro de Updike:

A fantasia corria solta; dizia-se que as sentinelas que faziam a ronda noturna sobre as muralhas do castelo tinham visto uma aparição trajando armadura completa.

Embora o conhecimento da peça não seja indispensável à compreensão de Gertrudes e Cláudio, é evidente que proporcionará um prazer bem maior à leitura do romance, na medida em que este pretende explicar certas situações da peça. Por exemplo, a complacência do casal real com Polônio e o incentivo ao casamento da filha deste, Ofélia, com Hamlet, teriam sua origem na cumplicidade de Polônio no regicídio. Horvendile, que não gosta do velho conselheiro tagarela, diz sobre Ofélia, destinada a ficar louca na peça: “Há em seu juízo uma rachadura que, no advento de qualquer circunstância mais séria, pode abrir-se de todo”. Gertrudes, em contrapartida, ama a jovem como à filha que nunca teve, ou como à jovem que ela mesma já não é, dá no mesmo. Em seu diálogo com a moça, um dos mais belos do livro, falam de Hamlet.

— Às vezes — explicou Ofélia — ele me elogia de modo tão excessivo que parece estar zombando de mim. Recita poemas, e às vezes até os escreve.

— Também Cláudio escreve versos — Gertrudes ousou revelar. — Os homens têm uma natureza mais dividida que a nossa. Passam da lama para o pico da montanha, em sua imaginação, sem jamais pisar num chão intermediário. Para justificar as exigências do corpo, sentem necessidade de exaltar o objeto dessas exigências, transformando-nos em deusas, em impossibilidades sublimes, ou então nos tratam como lama. Meu filho tem muita imaginação, e desde pequeno sente um fascínio pelo teatro. Ainda que desempenhe o papel de apaixonado até as últimas consequências, isso não quer dizer que esteja sendo falso.


Embora ausente em Wittemberg na maior parte do romance, o personagem do príncipe não é poupado. Este proto-Hamlet de John Updike funciona também como um anti-Hamlet, que em tudo desmente o sweet prince. Fortemente neurótico, é da mãe, contra quem foi hostil desde o nascimento, que ele recebe um implacável diagnóstico:

À medida que foi crescendo, suas descobertas dos mistérios da natureza desencadearam nele, até onde uma mãe pode perceber tais coisas, reações mais de espanto e repulsa do que de entusiasmo. Para ele, as mulheres não são assunto de maior interesse; ele próprio possui em tal grau o princípio passivo que este não lhe parece tão atraente em outrem.

Ignorado pelo pai, o príncipe foi educado pelo bobo da corte Yorick, de quem teria absorvido o fascínio por teatro e representação. Cláudio, que não tem filhos, sente-se paternalmente predisposto com relação ao rapaz.

Na verdade gosto dele, do jovem Hamlet. Creio que posso lhe dar algo que seu pai jamais lhe deu — eu e ele fomos ambos vítimas daquele brutamontes obtuso. Somos parecidos. A sutileza dele, que mencionaste, é muito semelhante à minha. Nós dois temos um lado sombrio, o desejo de viajar, de ir para longe desta terra atrasada e nevoenta, onde os carneiros parecem pedras e as pedras parecem carneiros. [...] Somos ambos vítimas da pequenez dinamarquesa, a sede de sangue dos viquingues reprimida pelas exterioridades do cristianismo, o qual ninguém aqui jamais compreendeu.

Gertrudes, que como toda mãe, sabe a quem deu à luz, discorda.

Eu o conheço. Ele é frio. Tu, não, Cláudio. És cálido, como eu. Gostas de ação. Queres viver, aproveitar o presente. Para meu filho, tudo é falso, mera encenação. Ele é o único homem em seu próprio universo. Se existem outras pessoas dotadas de sentimentos, isso apenas torna o espetáculo mais agradável, ele talvez concorde. Até mesmo a mim, que o amo com amor inevitável de mãe, desde o momento em que a causa de minhas dores foi colocada em meus braços, gemendo e chorando em memória do sacrifício por que nós dois havíamos passado, mesmo a mim ele vê com desdém, como prova de suas origens naturais, prova de que seu pai sucumbiu à volúpia.

Revelando-se mau profeta, Cláudio insiste que o enteado permaneça em Elsinore. Gertrudes cede, mas a contragosto.

Temo a guerra que ele traz dentro de si. Tu e eu estabelecemos a paz, na medida do possível, após um acidente trágico, e em paz a Dinamarca confirmou teu direito ao trono. Meu filho, com seus trajes negros e sua barba vermelha, vai perturbar todo esse equilíbrio complacente.

Updike encerra seu livro com o veredicto de um certo William Kerrigan:

Se deixarmos de lado o assassinato e seu encobrimento, Cláudio parece ser um rei competente; Gertrudes, uma rainha nobre; Ofélia, um tesouro de doçura; Polônio, um conselheiro maçante, mas não malévolo; Laertes, um rapaz como os outros. Hamlet arrasta-os todos para a morte.