28.1.08

Ateísmo para crianças

Pior ainda que admitir um erro é dar razão a um fundamentalista.

Quando escrevi, em comentário anterior, que A Bússola de Ouro, do inglês Philip Pullman, não denigre igreja cristã alguma, eu estava enganado, e o zelote William Donohue, da Catholic League norte-americana, infelizmente, certo. Depois de ler as duas seqüências, A Faca Sutil, e A Luneta Âmbar, sou obrigado a concordar: a trilogia infanto-juvenil Fronteiras do Universo [His Dark Materials] é uma das obras mais anticristãs, anticlericais e anti-católicas já publicadas desde o último suspiro no Gólgota. Voltaire e Nietzsche são coroinhas se comparados ao ateu militante Pullman, cujo propósito declarado é inculcar ateísmo nos jovens desde a mais tenra idade.

Muito cativante e bem contada, a história pretende ser um épico de fantasia ao estilo Crônicas de Nárnia, porém com uma propaganda ateísta explícita, bastante diferente da mensagem cristã implícita de C. S. Lewis (ver a resenha do filme baseado em sua obra). Em Fronteiras do Universo não vemos elfos, gnomos, duendes e outras figuras da mitologia nórdica presentes em Harry Potter ou no Senhor dos Anéis, mas tão-somente figuras da mitologia judaico-cristã, como anjos, bruxas e demônios (estes últimos retratados de modo bem positivo, como simpáticos bichinhos falantes que acompanham cada humano). Deus, conforme explica o casal homossexual de anjos Balthamos e Baruch, nunca foi o Criador, e sim um mero anjo vigarista que enganou todo mundo fazendo-se passar por Todo-Poderoso. Noutras palavras, Deus não existe, a vida eterna não existe, e a religião cristã é uma perniciosa farsa com o propósito exclusivo de manter a humanidade imersa na ignorância e no obscurantismo.

Li com grande prazer a Bússola e a Faca, mas com certa impaciência e cansaço as 526 páginas da Luneta Âmbar, não pelo tamanho, mas pela carga excessivamente teológica e agressivamente anticristã do volume, capazes de agastar até um católico aposentado como eu. Também achei algumas coisas pouquíssimo convincentes, como as duas crianças, Lyra e Will, chegando (vivas) ao Reino dos Mortos, onde todos falam inglês, como elas. Esse, aliás, é um problema em todos os livros: até os ursos polares de A Bússola de Ouro, e as crianças da cidade latina imaginária Cittagàzze, de A Faca Sutil, falam perfeitamente o idioma do autor.

Fãs, inclusive, opinaram que a Luneta, embora premiada em 2001, passa dos limites ao retratar todos os padres como assassinos e castradores de crianças, e ao repisar, de modo quase obsessivo, seu catecismo agnóstico. É uma pena que um escritor de tão rica imaginação e tamanho talento narrativo nada tenha de mais profundo para ensinar às crianças além de “Esta vida é tudo que temos, portanto desfrutem-na ao máximo”, isto é, o ancestral e mais que obedecido à risca carpe diem. Sentido da vida por sentido da vida, prefiro o do Monty Python: “Tente ser legal com as pessoas, evite comer gordura, leia um bom livro de vez em quando, faça caminhadas, e procure conviver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nacionalidades”.

Recomendo a leitura dessa fabulosa trilogia aos ateus adultos que apreciem fantasias e narrativas intrincadas, bem como às crianças e adolescentes que não estejam sendo educados pelos pais em alguma religião cristã.

15.1.08

Obrigado, fundamentalistas!

Sempre que um grupo fundamentalista se manifesta contra alguma obra de arte ou entretenimento, faço questão de conhecer essa obra, não importa o que os críticos digam a respeito dela. Via de regra, tais obras são muito boas; afinal, se os fundamentalistas as odeiam, é porque algo de bom elas devem ter. E, de fato, devo aos xiitas iranianos e neopentecostais, respectivamente, o prazer de ter conhecido Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, e os livros da série Harry Potter.

Desta vez, minha dívida é com os fundamentalistas católicos norte-americanos, que se mobilizaram para boicotar o belíssimo e encantador filme de fantasia A Bússola de Ouro, alegando que o romance em que se baseou, escrito pelo inglês Philip Pullman, é essencialmente anticlerical. Falam sobre uma “campanha insidiosa” para inculcar ateísmo às crianças e denegrir o cristianismo. O porta-voz dessa insanidade é um energúmeno chamado William Donohue, presidente de uma tal Catholic League, cujo logotipo não tem cruz alguma, mas tão-somente uma espada.

Em vista disso, não tive dúvidas: assisti ao filme, amei cada minuto de projeção, e comecei a ler o livro, tudo graças ao boicote desses fanáticos. Impressa ou projetada, A Bússola de Ouro, com sua simpática protagonista mirim, seus animais falantes, ursos polares de armadura e belas lições de coragem e amizade, não denigre igreja específica alguma. Em contrapartida, os prelados sinistros e intolerantes da organização intitulada Magisterium, vilões da premiada trilogia His Dark Materials de Pullman (traduzida aqui como Fronteiras do Universo), lembram muito o boçal Donohue e sua liga fascistóide.

Façam um favor às crianças de vocês e às crianças que há em vocês: assistam ao livro e leiam o filme A Bússola de Ouro.