
Apontar as inúmeras inexatidões históricas da excelente série Roma, da HBO/BBC, pode ser tanto teste de conhecimentos quanto exercício de pedantismo, mas estimula a pertinente discussão dos limites da ficção e da História na ficção histórica. Qual a vantagem de despender milhões de dólares para recriar uma época nos mínimos detalhes e, ao mesmo tempo, falsear os fatos ocorridos nessa época para fins dramáticos?
Com as devidas diferenças, Shakespeare fez o mesmo, a ponto de Churchill ter declarado que aprendera história da Inglaterra através das peças do Bardo. Ou seja, Churchill não aprendeu história da Inglaterra com Shakespeare; ele aprendeu Shakespeare, com a história da Inglaterra como pretexto.
Da mesma forma, Roma realiza uma recriação de época das mais realistas, para veicular uma peça de ficção; personagens verídicos e fatos históricos servem de mero suporte para dar credibilidade à imaginação dos roteiristas. O propósito não é ensinar História na TV; para isso estão aí os documentários. O propósito é tão-somente divertir, e a credibilidade mencionada garante que esse divertimento seja de um nível mais elevado que outras obras de teledramaturgia, como novelas e enlatados.
Para alguns, Roma reproduz impecavelmente o espírito da época, que seria mais importante que o rigor dos fatos. Por exemplo, sabemos que Augusto tentou, sem muito sucesso, implantar medidas moralizantes no hedonista povo romano, semelhantes aos atuais apelos do Vaticano para que os católicos europeus tenham filhos. A série pretende que o moralismo de Augusto teria origem na sua repulsa pela conduta imoral da mãe, e não na sua visão de estadista de que toda nação forte é conservadora (embora nem toda nação conservadora seja forte). O Bruto da TV mata César por instigação da mãe, embora o dos livros fosse casado. Segundo essa vertente, o mundo ocidental tornou-se o que é porque seus artífices não sabiam dizer “não” às suas mamães.
Destarte, a ficção histórica quer transformar conflitos históricos em pessoais, como forma de aproximar a História das pessoas que não a fazem. Tanto isso é verdade, que pessoas que fazem História preferem-na à ficção histórica; Napoleão devorava Plutarco e desprezava as peças históricas de Voltaire. Pois toda ficção requer imaginação para ser apreciada, e os que governam os destinos dos homens não podem dar-se ao luxo de ter imaginação, a qual, mesclada ao poder, sempre degenera em loucura, Nero e Heliogábalo que o digam.